sexta-feira, dezembro 03, 2004
Aliança mundial contra a sida
DN 2.12.04
Por Koïchiro Matsuura
Director-geral da UNESCO
A sida é, com toda a evidência, uma tragédia. Será uma fatalidade? Nada é menos certo. Na verdade, desde há cerca de um quarto de século que a epidemia da sida não pára de se espalhar pelo mundo. Há já mais de vinte milhões de mortes! Só no ano de 2003 foram mortos pela doença três milhões de infectados e cinco milhões foram contaminados, o que significa uma infecção a cada seis segundos. Existem actualmente entre trinta e quatro e quarenta e seis milhões de pessoas infectadas pelo vírus; e vinte seis milhões de entre elas vivem em África! Um africano adulto em cada doze está contaminado; um quinto dos indivíduos infectados vive na Ásia. A China e a Federação Russa estão a ser cada vez mais afectadas.
Actualmente, não dispomos de nenhuma vacina eficaz contra a sida - nem preventiva, nem terapêutica - mas apenas de tratamentos que permitem às pessoas infectadas viver uma vida quase normal. Entretanto, os doentes estão no Sul e os tratamentos estão no Norte. Nos países mais afectados, a sida mina as próprias condições de luta contra a doença, uma vez que, dizimando as populações mas também as elites, ela destrói as forças vivas políticas, económicas, educativas e sociais que poderiam tomar a cargo a luta contra o flagelo.
Face a este drama, deveríamos então desistir? Não, claro que não. Quantas batalhas contra a sida já perdemos, por falta de visão futura, de vontade política, por simples negligência ou por egoísmo!
Mas não perdemos a guerra. Juntos, podemos dominar o mal.
A primeira prioridade é o acesso universal ao tratamento. O Programa Onusida, cujo Comité das Organizações co-patrocinadoras presido este ano, e o Fundo Mundial de Luta contra a Sida, a Tuberculose e o Paludismo recordaram recentemente que o acesso ao tratamento é uma urgência mundial. Eles lançaram, com os seus parceiros, a iniciativa «3 por 5», que visa fornecer tratamento a três milhões de doentes dos países do Sul daqui até ao fim de 2005. Esta iniciativa deve ser apoiada.
Faço apelo, nesta perspectiva, à constituição de uma aliança mundial contra a sida, que reúna governos, ONG, sociedade civil e sector privado - estando o sector farmacêutico na primeira linha. Pois a luta contra a sida não pode estar entregue unicamente à relação individual do médico com o paciente: ela exige a constituição de um verdadeiro contrato mundial.
Tomemos consciência do que está em jogo: como sublinhou Luc Montagnier, co-descobridor do vírus HIV, nas Conferências do séc. XXI recentemente organizadas pela UNESCO, apenas 1% das pessoas actualmente infectadas em África sabem que o estão. E a maior parte das pessoas infectadas continuam a transmitir o vírus porque não sabem que estão doentes e, portanto, não se tratam.
A conclusão é clara: se desejarmos que sejam despistadas todas as pessoas infectadas, deveremos poder propor-lhes tratamentos desde o início da sua infecção.
É, portanto, necessário universalizar o tratamento. Isto implica, não só, um vasto esforço de solidariedade - a fim de divulgar o uso das triterapias - mas também o aperfeiçoamento de novos tratamentos. Daí a segunda prioridade: o desenvolvimento da pesquisa.
Como sublinharam na UNESCO Luc Montagnier e Jim Yong Kim, director do departamento HIV/Sida da OMS, a pesquisa tem de progredir e aperfeiçoar os tratamentos baratos e bem tolerados, que poderão ser utilizados seja em primeira linha, seja em complemento das triterapias. Trata-se não só de tratar a infecção, mas também de tratar o hospedeiro do mal, ou seja, a imunodepressão. Esquemas terapêuticos simplificados foram aperfeiçoados pela OMS e foram obtidos resultados.
De resto, face aos fracassos que aconteceram até agora na procura de uma vacina preventiva, é evidente que a pesquisa deveria orientar-se em primeiro lugar para o aperfeiçoamento de uma vacina terapêutica, que poderia completar os tratamentos actuais. Segundo os melhores investigadores, uma tal vacina pode ser aperfeiçoada num prazo razoável. «Se a vacina se revelar eficaz», disse-nos Luc Montagnier, «o doente, desde que esteja imunizado, controlará a sua infecção viral no momento de paragem da triterapia, permitindo assim ao vírus não reaparecer imediatamente.» Uma tal política de vacinação exigirá, evidentemente, o estabelecimento no terreno de estruturas que permitam tratar os indivíduos infectados e seguir as pessoas vacinadas.
Terceira prioridade: como diminuir a propagação da sida, que afecta cinco milhões de pessoas por ano? É um grande desafio para a humanidade, que só pode ser vencido acelerando a prevenção.
Tudo indica que a prevenção é a solução mais urgente e mais económica, e também, na ausência da vacina, a mais eficaz. No entanto, a prevenção, reduzida apenas às suas forças, é muita vezes impotente, sobretudo quando as mulheres não são realmente livres de escolher as modalidades das suas relações e os seus meios de protecção.
Como recordou Luc Montagnier, a prevenção reduzida apenas às suas forças esbarra também em barreiras económicas - a pobreza - e políticas - a situação de caos ou de guerra civil que afecta numerosos países em dificuldades.
O erro foi muitas vezes o de conceber a prevenção e o tratamento como duas estratégias independentes e rivais. Na realidade, tratamento, prevenção, educação e informação devem andar a par, para que os medicamentos e o saber possam chegar em conjunto ao maior número de pessoas. Para combater eficazmente a sida, dominá-la, e, porque não, vencê-la um dia, exige-se que haja políticas e uma vontade política.
Certos países demonstraram-no bem: no Brasil, na Tailândia, no Senegal, no Uganda ou na República Dominicana, as taxas de infecção diminuíram. Estas políticas devem, é evidente, adaptar-se às realidades nacionais e culturas locais. Mas, em troca, as comunidades locais devem lutar, no seu próprio seio, contra as práticas e os preconceitos que têm efeitos sanitários dramáticos e, concretamente, contra as discriminações que atingem os doentes e as mulheres, frequentemente tratados como párias.
A diversidade das situações face à sida não deve, de resto, ser interpretada em temos puramente negativos: pois ela não reflecte unicamente desigualdades de rendimento ou de desenvolvimento e diferenças de moral ou de condições climáticas, mas também a diversidade das políticas de prevenção, de educação, de informação e de tratamento. Não foram apenas países ricos que conseguiram travar a epidemia. Há também um grande número de países onde a prevalência no adulto é inferior a 1% e este número não é muito maior à escala mundial. A diversidade de situações é, no fim, portadora de esperança: ela significa que, desde o momento em que exista uma vontade política, esta não tarda a mostrar os seus frutos. Nós sentimos, actualmente, o seu aparecimento à escala planetária, inclusive no seio do G8. Porque a sida não é o destino da humanidade: é o espelho das suas carências. Juntos, podemos fazê-la recuar.
Por Koïchiro Matsuura
Director-geral da UNESCO
A sida é, com toda a evidência, uma tragédia. Será uma fatalidade? Nada é menos certo. Na verdade, desde há cerca de um quarto de século que a epidemia da sida não pára de se espalhar pelo mundo. Há já mais de vinte milhões de mortes! Só no ano de 2003 foram mortos pela doença três milhões de infectados e cinco milhões foram contaminados, o que significa uma infecção a cada seis segundos. Existem actualmente entre trinta e quatro e quarenta e seis milhões de pessoas infectadas pelo vírus; e vinte seis milhões de entre elas vivem em África! Um africano adulto em cada doze está contaminado; um quinto dos indivíduos infectados vive na Ásia. A China e a Federação Russa estão a ser cada vez mais afectadas.
Actualmente, não dispomos de nenhuma vacina eficaz contra a sida - nem preventiva, nem terapêutica - mas apenas de tratamentos que permitem às pessoas infectadas viver uma vida quase normal. Entretanto, os doentes estão no Sul e os tratamentos estão no Norte. Nos países mais afectados, a sida mina as próprias condições de luta contra a doença, uma vez que, dizimando as populações mas também as elites, ela destrói as forças vivas políticas, económicas, educativas e sociais que poderiam tomar a cargo a luta contra o flagelo.
Face a este drama, deveríamos então desistir? Não, claro que não. Quantas batalhas contra a sida já perdemos, por falta de visão futura, de vontade política, por simples negligência ou por egoísmo!
Mas não perdemos a guerra. Juntos, podemos dominar o mal.
A primeira prioridade é o acesso universal ao tratamento. O Programa Onusida, cujo Comité das Organizações co-patrocinadoras presido este ano, e o Fundo Mundial de Luta contra a Sida, a Tuberculose e o Paludismo recordaram recentemente que o acesso ao tratamento é uma urgência mundial. Eles lançaram, com os seus parceiros, a iniciativa «3 por 5», que visa fornecer tratamento a três milhões de doentes dos países do Sul daqui até ao fim de 2005. Esta iniciativa deve ser apoiada.
Faço apelo, nesta perspectiva, à constituição de uma aliança mundial contra a sida, que reúna governos, ONG, sociedade civil e sector privado - estando o sector farmacêutico na primeira linha. Pois a luta contra a sida não pode estar entregue unicamente à relação individual do médico com o paciente: ela exige a constituição de um verdadeiro contrato mundial.
Tomemos consciência do que está em jogo: como sublinhou Luc Montagnier, co-descobridor do vírus HIV, nas Conferências do séc. XXI recentemente organizadas pela UNESCO, apenas 1% das pessoas actualmente infectadas em África sabem que o estão. E a maior parte das pessoas infectadas continuam a transmitir o vírus porque não sabem que estão doentes e, portanto, não se tratam.
A conclusão é clara: se desejarmos que sejam despistadas todas as pessoas infectadas, deveremos poder propor-lhes tratamentos desde o início da sua infecção.
É, portanto, necessário universalizar o tratamento. Isto implica, não só, um vasto esforço de solidariedade - a fim de divulgar o uso das triterapias - mas também o aperfeiçoamento de novos tratamentos. Daí a segunda prioridade: o desenvolvimento da pesquisa.
Como sublinharam na UNESCO Luc Montagnier e Jim Yong Kim, director do departamento HIV/Sida da OMS, a pesquisa tem de progredir e aperfeiçoar os tratamentos baratos e bem tolerados, que poderão ser utilizados seja em primeira linha, seja em complemento das triterapias. Trata-se não só de tratar a infecção, mas também de tratar o hospedeiro do mal, ou seja, a imunodepressão. Esquemas terapêuticos simplificados foram aperfeiçoados pela OMS e foram obtidos resultados.
De resto, face aos fracassos que aconteceram até agora na procura de uma vacina preventiva, é evidente que a pesquisa deveria orientar-se em primeiro lugar para o aperfeiçoamento de uma vacina terapêutica, que poderia completar os tratamentos actuais. Segundo os melhores investigadores, uma tal vacina pode ser aperfeiçoada num prazo razoável. «Se a vacina se revelar eficaz», disse-nos Luc Montagnier, «o doente, desde que esteja imunizado, controlará a sua infecção viral no momento de paragem da triterapia, permitindo assim ao vírus não reaparecer imediatamente.» Uma tal política de vacinação exigirá, evidentemente, o estabelecimento no terreno de estruturas que permitam tratar os indivíduos infectados e seguir as pessoas vacinadas.
Terceira prioridade: como diminuir a propagação da sida, que afecta cinco milhões de pessoas por ano? É um grande desafio para a humanidade, que só pode ser vencido acelerando a prevenção.
Tudo indica que a prevenção é a solução mais urgente e mais económica, e também, na ausência da vacina, a mais eficaz. No entanto, a prevenção, reduzida apenas às suas forças, é muita vezes impotente, sobretudo quando as mulheres não são realmente livres de escolher as modalidades das suas relações e os seus meios de protecção.
Como recordou Luc Montagnier, a prevenção reduzida apenas às suas forças esbarra também em barreiras económicas - a pobreza - e políticas - a situação de caos ou de guerra civil que afecta numerosos países em dificuldades.
O erro foi muitas vezes o de conceber a prevenção e o tratamento como duas estratégias independentes e rivais. Na realidade, tratamento, prevenção, educação e informação devem andar a par, para que os medicamentos e o saber possam chegar em conjunto ao maior número de pessoas. Para combater eficazmente a sida, dominá-la, e, porque não, vencê-la um dia, exige-se que haja políticas e uma vontade política.
Certos países demonstraram-no bem: no Brasil, na Tailândia, no Senegal, no Uganda ou na República Dominicana, as taxas de infecção diminuíram. Estas políticas devem, é evidente, adaptar-se às realidades nacionais e culturas locais. Mas, em troca, as comunidades locais devem lutar, no seu próprio seio, contra as práticas e os preconceitos que têm efeitos sanitários dramáticos e, concretamente, contra as discriminações que atingem os doentes e as mulheres, frequentemente tratados como párias.
A diversidade das situações face à sida não deve, de resto, ser interpretada em temos puramente negativos: pois ela não reflecte unicamente desigualdades de rendimento ou de desenvolvimento e diferenças de moral ou de condições climáticas, mas também a diversidade das políticas de prevenção, de educação, de informação e de tratamento. Não foram apenas países ricos que conseguiram travar a epidemia. Há também um grande número de países onde a prevalência no adulto é inferior a 1% e este número não é muito maior à escala mundial. A diversidade de situações é, no fim, portadora de esperança: ela significa que, desde o momento em que exista uma vontade política, esta não tarda a mostrar os seus frutos. Nós sentimos, actualmente, o seu aparecimento à escala planetária, inclusive no seio do G8. Porque a sida não é o destino da humanidade: é o espelho das suas carências. Juntos, podemos fazê-la recuar.