sexta-feira, dezembro 03, 2004
Grávidas mal vigiadas no sector privado
Entrevista DN 1.12.04
Cristina Guerreiro
Obstetra da Maternidade Alfredo da Costa
Os estudos existentes sobre a prevalência de HIV nas grávidas dão a ver uma taxa alta, de 0,49 a 0,50%, no País, e ainda mais elevada na zona de Lisboa (1,1%), esta última indicadora de epidemia generalizada. Ficou surpreendida?
Não, já esperava. Desde os anos 90 que nós, na Maternidade Alfredo da Costa (MAC), identificámos essa elevada prevalência nas nossas grávidas. O estudo da Associação para o Estudo Clínico da Sida (APECS), efectuado a partir das amostras aos testes do pézinho de todos os nados vivos em 2003, identificou 11 grávidas por mil na Grande Lisboa, o que está de acordo com os nossos números: fazemos seis mil partos por ano e nas nossas duas consultas de grávidas seropositivas temos 67 mulheres.
Quando foram criadas essas consultas específicas para seropositivas?
A primeira, para grávidas toxicodependentes com HIV, existe desde 1989. A MAC foi pioneira na introdução de uma consulta dessas quando o tema ainda era desconfortável. Mesmo hoje, não sei quantas existem no País... Depois começámos a ver que não havia espaço nem protocolos para as mulheres infectadas por via sexual e que o seu número já o justificava. O estudo que em 1995 veio provar definitivamente os benefícios da terapia de AZT na prevenção da transmissão mãe-filho (deve ser dado no parto por via endovenosa e ao recém-nascido durante seis semanas) também nos deu ânimo para avançar. Criámos então, em 96, a outra consulta para grávidas infectadas por via sexual.
Como tem variado, desde o início da consulta, o número dessas grávidas?
Aumentou bastante, mas há um factor determinante: o facto de o rastreio ser obrigatório desde 1998. Isso permitiu perceber a gravidade da situação. É que em 1992 ainda se discutia se se devia fazer uma análise a todas as grávidas ou só aos grupos de risco...
Essa norma da DGS não tem carácter vinculativo. A aplicação não é fiscalizada. No hospital pediátrico de Coimbra foram identificadas seis crianças que, de 1996 a 2003, nasceram infectadas após gravidezes vigiadas em que não foi feito rastreio. Como é possível?
Faço a mesma pergunta. As directivas da Direcção Geral de Saúde (DGS) são claras quanto ao carácter imperativo do rastreio. Aliás, a partir deste ano, saiu uma nova norma que obriga a duas análises: no primeiro e no terceiro trimestre. Mas constato, a partir de trabalhos apresentados por colegas, que existe nesta matéria uma diferença entre o Norte e o Sul.
Isso porquê?
Não sei... Talvez porque o sul é uma zona com maior prevalência e haja aqui mais consciência. Na MAC, não vem nenhuma mulher de um centro de saúde sem virologia. E se por acaso algum médico ou centro de saúde se tiver esquecido, o que é raro, faz-se na consulta das 36 semanas. E se isso falhar, fazemos o teste rápido antes do parto.
Mas há serviços de obstetrícia em que esses testes não existem.
É lamentável: devia ser obrigatório disponibilizar testes rápidos em todos os serviços. E não consigo conceber que tal não se faça pelo custo: são cinco ou seis euros cada teste. Creio que é mais por inércia. Se calhar, falta alguém que exija e vá para a frente com a compra... A minha grande preocupação, neste momento, para a qual fui despertada pelo coordenador da Comissão de Luta contra a Sida, é se esses testes rápidos existem nas clínicas privadas. E se há o cuidado de verificar a existência da serologia.
Uma vez que a Inspecção Geral da Saúde não pode entrar nas unidades privadas, quem pode fiscalizar isso?
Não sei. E com a implementação dos seguros e do recurso ao sector privado seria importante verificar isso.
Isso pode criar um viés curioso: para variar, as camadas mais desfavorecidas receberiam o melhor tratamento...
Exactamente. É muito preocupante, mesmo muito preocupante, que nos estratos com mais recursos venha a existir mais taxa de transmissão vertical. Preocupa-me muito o sector privado. Não sei o que compete a quem, não sou política. Mas alguém tem de estabelecer a quem compete vigiar.
A taxa nacional de transmissão vertical é de 4%. A da MAC é zero... Há alguma coisa a correr mal nos outros serviços?
Creio que os últimos números nacionais andam nos 3,6%. Que não é assim tão mau: os dos EUA andam nos 3%, 4%. E há países na Europa com a mesma taxa. Claro que podemos melhorar, sensibilizando a população para a necessidade do rastreio. Mas com um país com défices de diagnóstico e de prevalência, não são números assim tão maus. Aliás, os dados das gravidezes notificadas dão a ver uma diminuição da transmissão vertical nos últimos anos. Quanto à MAC, a transmissão zero é para as gravidezes vigiadas: também há as outras...
Há a noção de que os toxicodependentes são mais descuidados com a infecção que a restante população. Mas não será antes ao contrário? É que eles têm noção do risco que correm, enquanto que a generalidade da população se considera livre de perigo.
A nossa experiência coincide com essa visão. Neste momento, há uma diferença muito grande entre as seropositivas toxicodependentes e as outras em termos de diagnóstico: habitualmente as toxicodependentes grávidas já têm o diagnóstico feito, através, nomeada- mente dos Centros de Apoio a Toxicodependentes, e já estão a fazer terapêutica. E de facto a população não toxicodependente está menos sensibilizada, eram muitos casos é a gravidez que impele à realização do teste. Tenho muito mais seropositividade com diagnóstico tardio e grande estupefacção, nas grávidas não toxicodependentes, que nas outras.
Um pormenor curioso é o facto de 40% dos maridos ou parceiros actuais das grávidas infectadas seguidas na MAC não estarem infectados.
Quando as mulheres são diagnosticadas, a maioria dos parceiros fazem também a análise. Como a transmissão da mulher ao homem é mais difícil que no sentido contrário, há uma alta percentagem de homens não infectados. Nos casais serodiscordantes insisto sempre no cuidado de usar o preservativo para sempre. Mas infelizmente tenho a noção de que nem todos vão seguir essa regra. A modificação de comportamentos, a aprendizagem de uma nova forma de viver a sexualidade é muito complicada. Nunca pensei que o fosse tanto.
Mesmo com esse risco tão óbvio?
É. Eu insisto, digo-lhes que tiveram sorte até ao momento, mas que é uma questão de tempo...
Se é assim com os casais serodiscordantes, no resto da população?
Acho que esse é o maior problema. Tem havido muita informação ao nível da sida, mas com formatação, em muitos casos, errada, com a associação da infecção a comportamentos marginais, como a prostituição, a toxicodependência, longe da 'vida normal'. É por isso que nós, os obstetras, nos temos preocupado em rebater essa ideia. Mas lembro-me de que no final dos anos noventa havia ainda sectores de pessoas informadas que não acreditavam nos nossos números, quando dizíamos que mais de 60% das nossas grávidas infectadas tinham contraído o vírus por contacto sexual. Diziam que estávamos enganados, que deveria haver outro factor de risco que não aquele...
Foi anunciado um projecto de monitorização da prevalência de HIV nas grávidas no início do ano. Não arrancou...
A MAC apresentou um projecto, em Março, nesse sentido, incluindo à partida só algumas maternidades, para ver se o projecto tem pernas para andar, e um epidemiologista para tratar os dados. O objectivo seria conferir as condições e a realidade nos vários hospitais, saber quais os fármacos instituídos, toda a profilaxia. E também, mas secundariamente, o número de casos. Claro que o ideal seria que isso se fizesse em todos os serviços de obstetrícia. Mas em Portugal temos muito pouco o hábito de nos organizarmos. Falhamos muito em termos de rentabilização e de junção de experiências. Para se ver o que está a falhar, onde temos de actuar e que medidas se devem implementar. Às vezes é falta de liderança...
A Comissão de Luta Contra a Sida existe há mais de uma década mas o conhecimento da realidade é muito escasso. Como interpreta isto?
É essa endémica falta de organização e de definir prioridades... Pela minha parte, sei que nós, na MAC, não ficámos inertes. Se não temos computadores nas consultas, usamos papel. Se estivermos à espera das condições ideais, nunca vamos fazer nada. Será que há muito a fazer e as prioridades vão para outros lados? Não sei, não sei responder.
Que preconiza para este combate?
Em primeiro lugar, baixava o preço dos preservativos, uma caixa de 12 custa quase nove euros. E apostava em novas campanhas, direccionadas para os mais velhos, que pensam que não estão em risco, porque acham que a infecção se vê na cara, que é apanágio dos toxicodependentes, dos homossexuais... Estas pessoas nunca se habituaram a usar preservativo e pensam que a relação sexual fortuita não é problema.
Cristina Guerreiro
Obstetra da Maternidade Alfredo da Costa
Os estudos existentes sobre a prevalência de HIV nas grávidas dão a ver uma taxa alta, de 0,49 a 0,50%, no País, e ainda mais elevada na zona de Lisboa (1,1%), esta última indicadora de epidemia generalizada. Ficou surpreendida?
Não, já esperava. Desde os anos 90 que nós, na Maternidade Alfredo da Costa (MAC), identificámos essa elevada prevalência nas nossas grávidas. O estudo da Associação para o Estudo Clínico da Sida (APECS), efectuado a partir das amostras aos testes do pézinho de todos os nados vivos em 2003, identificou 11 grávidas por mil na Grande Lisboa, o que está de acordo com os nossos números: fazemos seis mil partos por ano e nas nossas duas consultas de grávidas seropositivas temos 67 mulheres.
Quando foram criadas essas consultas específicas para seropositivas?
A primeira, para grávidas toxicodependentes com HIV, existe desde 1989. A MAC foi pioneira na introdução de uma consulta dessas quando o tema ainda era desconfortável. Mesmo hoje, não sei quantas existem no País... Depois começámos a ver que não havia espaço nem protocolos para as mulheres infectadas por via sexual e que o seu número já o justificava. O estudo que em 1995 veio provar definitivamente os benefícios da terapia de AZT na prevenção da transmissão mãe-filho (deve ser dado no parto por via endovenosa e ao recém-nascido durante seis semanas) também nos deu ânimo para avançar. Criámos então, em 96, a outra consulta para grávidas infectadas por via sexual.
Como tem variado, desde o início da consulta, o número dessas grávidas?
Aumentou bastante, mas há um factor determinante: o facto de o rastreio ser obrigatório desde 1998. Isso permitiu perceber a gravidade da situação. É que em 1992 ainda se discutia se se devia fazer uma análise a todas as grávidas ou só aos grupos de risco...
Essa norma da DGS não tem carácter vinculativo. A aplicação não é fiscalizada. No hospital pediátrico de Coimbra foram identificadas seis crianças que, de 1996 a 2003, nasceram infectadas após gravidezes vigiadas em que não foi feito rastreio. Como é possível?
Faço a mesma pergunta. As directivas da Direcção Geral de Saúde (DGS) são claras quanto ao carácter imperativo do rastreio. Aliás, a partir deste ano, saiu uma nova norma que obriga a duas análises: no primeiro e no terceiro trimestre. Mas constato, a partir de trabalhos apresentados por colegas, que existe nesta matéria uma diferença entre o Norte e o Sul.
Isso porquê?
Não sei... Talvez porque o sul é uma zona com maior prevalência e haja aqui mais consciência. Na MAC, não vem nenhuma mulher de um centro de saúde sem virologia. E se por acaso algum médico ou centro de saúde se tiver esquecido, o que é raro, faz-se na consulta das 36 semanas. E se isso falhar, fazemos o teste rápido antes do parto.
Mas há serviços de obstetrícia em que esses testes não existem.
É lamentável: devia ser obrigatório disponibilizar testes rápidos em todos os serviços. E não consigo conceber que tal não se faça pelo custo: são cinco ou seis euros cada teste. Creio que é mais por inércia. Se calhar, falta alguém que exija e vá para a frente com a compra... A minha grande preocupação, neste momento, para a qual fui despertada pelo coordenador da Comissão de Luta contra a Sida, é se esses testes rápidos existem nas clínicas privadas. E se há o cuidado de verificar a existência da serologia.
Uma vez que a Inspecção Geral da Saúde não pode entrar nas unidades privadas, quem pode fiscalizar isso?
Não sei. E com a implementação dos seguros e do recurso ao sector privado seria importante verificar isso.
Isso pode criar um viés curioso: para variar, as camadas mais desfavorecidas receberiam o melhor tratamento...
Exactamente. É muito preocupante, mesmo muito preocupante, que nos estratos com mais recursos venha a existir mais taxa de transmissão vertical. Preocupa-me muito o sector privado. Não sei o que compete a quem, não sou política. Mas alguém tem de estabelecer a quem compete vigiar.
A taxa nacional de transmissão vertical é de 4%. A da MAC é zero... Há alguma coisa a correr mal nos outros serviços?
Creio que os últimos números nacionais andam nos 3,6%. Que não é assim tão mau: os dos EUA andam nos 3%, 4%. E há países na Europa com a mesma taxa. Claro que podemos melhorar, sensibilizando a população para a necessidade do rastreio. Mas com um país com défices de diagnóstico e de prevalência, não são números assim tão maus. Aliás, os dados das gravidezes notificadas dão a ver uma diminuição da transmissão vertical nos últimos anos. Quanto à MAC, a transmissão zero é para as gravidezes vigiadas: também há as outras...
Há a noção de que os toxicodependentes são mais descuidados com a infecção que a restante população. Mas não será antes ao contrário? É que eles têm noção do risco que correm, enquanto que a generalidade da população se considera livre de perigo.
A nossa experiência coincide com essa visão. Neste momento, há uma diferença muito grande entre as seropositivas toxicodependentes e as outras em termos de diagnóstico: habitualmente as toxicodependentes grávidas já têm o diagnóstico feito, através, nomeada- mente dos Centros de Apoio a Toxicodependentes, e já estão a fazer terapêutica. E de facto a população não toxicodependente está menos sensibilizada, eram muitos casos é a gravidez que impele à realização do teste. Tenho muito mais seropositividade com diagnóstico tardio e grande estupefacção, nas grávidas não toxicodependentes, que nas outras.
Um pormenor curioso é o facto de 40% dos maridos ou parceiros actuais das grávidas infectadas seguidas na MAC não estarem infectados.
Quando as mulheres são diagnosticadas, a maioria dos parceiros fazem também a análise. Como a transmissão da mulher ao homem é mais difícil que no sentido contrário, há uma alta percentagem de homens não infectados. Nos casais serodiscordantes insisto sempre no cuidado de usar o preservativo para sempre. Mas infelizmente tenho a noção de que nem todos vão seguir essa regra. A modificação de comportamentos, a aprendizagem de uma nova forma de viver a sexualidade é muito complicada. Nunca pensei que o fosse tanto.
Mesmo com esse risco tão óbvio?
É. Eu insisto, digo-lhes que tiveram sorte até ao momento, mas que é uma questão de tempo...
Se é assim com os casais serodiscordantes, no resto da população?
Acho que esse é o maior problema. Tem havido muita informação ao nível da sida, mas com formatação, em muitos casos, errada, com a associação da infecção a comportamentos marginais, como a prostituição, a toxicodependência, longe da 'vida normal'. É por isso que nós, os obstetras, nos temos preocupado em rebater essa ideia. Mas lembro-me de que no final dos anos noventa havia ainda sectores de pessoas informadas que não acreditavam nos nossos números, quando dizíamos que mais de 60% das nossas grávidas infectadas tinham contraído o vírus por contacto sexual. Diziam que estávamos enganados, que deveria haver outro factor de risco que não aquele...
Foi anunciado um projecto de monitorização da prevalência de HIV nas grávidas no início do ano. Não arrancou...
A MAC apresentou um projecto, em Março, nesse sentido, incluindo à partida só algumas maternidades, para ver se o projecto tem pernas para andar, e um epidemiologista para tratar os dados. O objectivo seria conferir as condições e a realidade nos vários hospitais, saber quais os fármacos instituídos, toda a profilaxia. E também, mas secundariamente, o número de casos. Claro que o ideal seria que isso se fizesse em todos os serviços de obstetrícia. Mas em Portugal temos muito pouco o hábito de nos organizarmos. Falhamos muito em termos de rentabilização e de junção de experiências. Para se ver o que está a falhar, onde temos de actuar e que medidas se devem implementar. Às vezes é falta de liderança...
A Comissão de Luta Contra a Sida existe há mais de uma década mas o conhecimento da realidade é muito escasso. Como interpreta isto?
É essa endémica falta de organização e de definir prioridades... Pela minha parte, sei que nós, na MAC, não ficámos inertes. Se não temos computadores nas consultas, usamos papel. Se estivermos à espera das condições ideais, nunca vamos fazer nada. Será que há muito a fazer e as prioridades vão para outros lados? Não sei, não sei responder.
Que preconiza para este combate?
Em primeiro lugar, baixava o preço dos preservativos, uma caixa de 12 custa quase nove euros. E apostava em novas campanhas, direccionadas para os mais velhos, que pensam que não estão em risco, porque acham que a infecção se vê na cara, que é apanágio dos toxicodependentes, dos homossexuais... Estas pessoas nunca se habituaram a usar preservativo e pensam que a relação sexual fortuita não é problema.