sexta-feira, dezembro 03, 2004
Aquilo que 'só acontece aos outros' aconteceu com elas
DN 1.12.04
No berço rosa, Catarina dorme, sob a vigilância do cão da casa, que enfrenta estranhos como se desafiasse o destino. «Não morde», sossega Ana, a dona, num sorriso. Mãe há apenas um mês depois de anos de espera, exibe o seu milagre em gestos suaves. «Quando descobri que era seropositiva, em 1998, aos 29 anos, achei que nunca seria possível. O meu médico, quando lhe falávamos nisso, chamava-nos malucos. Só há um ano nos disse que, se nós queríamos isto assim tanto, talvez fosse de arriscar.»
O «nós» é ela e o marido, também seropositivo. E o risco é o de pôr no mundo uma criança portadora do vírus. Um risco que se concretiza para 22 das 600 grávidas com HIV que se crê existirem cada ano no País , mas que Ana despede na voz tranquila. «Nem estou preocupada. Tenho a carga viral indetectável, a primeira análise dela foi negativa... Não vai acontecer.»
Certo é que não deixou nada ao acaso: foi seguida na consulta especial para grávidas seropositivas da Maternidade Alfredo da Costa (MAC), fez a terapêutica anti-retroviral, e optou pela cesariana, mesmo se com a sua carga viral podia ter tido um parto normal. «Joguei pelo seguro.» E, de acordo com as indicações clínicas, não amamenta a bebé. Precauções que permitem à MAC ostentar uma taxa de transmissão mãe-filho nula nos casos de gravidez vigiada e acalentam o optimismo de Ana.
Mas também é verdade que, como ela diz, não há muita gente como ela. Técnica informática, ganhou o hábito de fazer periodicamente, a seu pedido, o teste de HIV nos exames médicos de medicina do trabalho da empresa. Uma precaução que lhe pode ter dado, admite, uma sensação ilusória de segurança e que não acompanhou sempre do uso do preservativo mas que lhe valeu descobrir cedo a sua infecção, permitindo, através do uso imediato da terapêutica, baixar a carga viral. E perceber que fora o namorado de um ano, com quem casara entretanto, a infectá-la.
«Numa situação como esta ou as pessoas gostam muito uma da outra ou acaba tudo.» Deviam gostar muito um do outro, porque seis anos depois tiveram a Catarina. Mas não foi fácil. «Pensei que ia morrer, recebi aquilo como um atestado de morte. O nosso mundo ruiu. Fomos a todo o lado, à procura de ajuda.» No meio do desespero, nunca houve, garante, recriminações. «Não sei se ele se sentiu culpado. Mas é tão culpado como eu. Somos responsáveis pelos nossos actos. Nunca insisti para ele usar preservativo, para fazer análises...»
Talvez Ana tenha razão quando garante que saber da infecção fez dela uma pessoa melhor, «menos egoísta», mais capaz de apreciar a vida e os seus suaves milagres. Mesmo se admite que nunca falou do assunto à família nem aos amigos: «Não estão preparados.» Mesmo se está certa de que, caso os técnicos de medicina do trabalho que lhe comunicaram o resultado do teste derem com a língua nos dentes, a «chacinam» na empresa. Mesmo assim. «Não sinto isto como um problema. Às vezes penso que as pessoas com cancro, por exemplo, têm uma terapêutica mais pesada.»
Teresa tem a mesma idade que Ana tinha quando se descobriu seropositiva - 29 anos -, mas já sabe desde os 26. Descobriu da pior maneira, quando estava grávida do primeiro filho. «O médico do centro de saúde mandou-me com a carta das análises à cara: "Olha o que tu tens".» A seguir, conta, disse-lhe que ela não ia poder ter a criança. «Teve de ser a enfermeira a explicar-me o que as análises queriam dizer. Saí dali tão desesperada que só pensava em matar-me.» Como a enfermeira lhe mencionara a consulta especial da MAC, meteu-se num táxi e foi para lá. Só aí se acalmou. «Disseram-me que não tinha de abortar, que podia tratar-me, que a criança não tinha de nascer com o vírus.»
Dito e feito. O menino, nascido em 2001, está são como um pêro. E Teresa de novo grávida, mesmo se por «acidente». «Não sei como foi, usámos sempre preservativo... Deve ter rebentado.» Seronegativo como 40% dos parceiros das grávidas infectadas seguidas na MAC, o marido de Teresa corre riscos em cada relação não protegida. Um risco que, como sublinha a obstetra Cristina Guerreiro, cresce com o tempo e não é assimilado por todos os homens: alguns recorrem a tácticas mirabolantes, como aquele que, segundo a mulher, «se desinfectava sempre muito bem com álcool após cada relação», outros apostam na hipótese de serem "imunes"... até um dia. Teresa não sabe quem a infectou, nem pensa nisso. Só a preocupa «viver a vida», ultrapassar as dificuldades financeiras que, com o seu ordenado de pouco mais de 400 euros e o desemprego do marido, enfrenta. «Está tudo muito caro», lamenta. «O dinheiro só dá para a renda e para a escola do miúdo. Até os preservativos são caros. Vejo-me à rasca.»
Também Mariana, de 34 anos, a 13 semanas de ter o primeiro bebé, engravidou «por acaso» - sabia-se seropositiva há dois anos. «Como tinha tido muitos namorados, pus- -me a pensar... e fiz o teste.» Começou a terapia logo. Deu-se mal no início, mas agora habituou-se. Consciencializada da necessidade de prevenção, tenta passar a mensagem. «Há muita gente a pensar que está tudo bem, e não está. Mas as pessoas só amarradas com uma corda vão fazer análises. Dizem: isto não vai acontecer comigo. Como é: pode acontecer com outros e com eles não?»
No berço rosa, Catarina dorme, sob a vigilância do cão da casa, que enfrenta estranhos como se desafiasse o destino. «Não morde», sossega Ana, a dona, num sorriso. Mãe há apenas um mês depois de anos de espera, exibe o seu milagre em gestos suaves. «Quando descobri que era seropositiva, em 1998, aos 29 anos, achei que nunca seria possível. O meu médico, quando lhe falávamos nisso, chamava-nos malucos. Só há um ano nos disse que, se nós queríamos isto assim tanto, talvez fosse de arriscar.»
O «nós» é ela e o marido, também seropositivo. E o risco é o de pôr no mundo uma criança portadora do vírus. Um risco que se concretiza para 22 das 600 grávidas com HIV que se crê existirem cada ano no País , mas que Ana despede na voz tranquila. «Nem estou preocupada. Tenho a carga viral indetectável, a primeira análise dela foi negativa... Não vai acontecer.»
Certo é que não deixou nada ao acaso: foi seguida na consulta especial para grávidas seropositivas da Maternidade Alfredo da Costa (MAC), fez a terapêutica anti-retroviral, e optou pela cesariana, mesmo se com a sua carga viral podia ter tido um parto normal. «Joguei pelo seguro.» E, de acordo com as indicações clínicas, não amamenta a bebé. Precauções que permitem à MAC ostentar uma taxa de transmissão mãe-filho nula nos casos de gravidez vigiada e acalentam o optimismo de Ana.
Mas também é verdade que, como ela diz, não há muita gente como ela. Técnica informática, ganhou o hábito de fazer periodicamente, a seu pedido, o teste de HIV nos exames médicos de medicina do trabalho da empresa. Uma precaução que lhe pode ter dado, admite, uma sensação ilusória de segurança e que não acompanhou sempre do uso do preservativo mas que lhe valeu descobrir cedo a sua infecção, permitindo, através do uso imediato da terapêutica, baixar a carga viral. E perceber que fora o namorado de um ano, com quem casara entretanto, a infectá-la.
«Numa situação como esta ou as pessoas gostam muito uma da outra ou acaba tudo.» Deviam gostar muito um do outro, porque seis anos depois tiveram a Catarina. Mas não foi fácil. «Pensei que ia morrer, recebi aquilo como um atestado de morte. O nosso mundo ruiu. Fomos a todo o lado, à procura de ajuda.» No meio do desespero, nunca houve, garante, recriminações. «Não sei se ele se sentiu culpado. Mas é tão culpado como eu. Somos responsáveis pelos nossos actos. Nunca insisti para ele usar preservativo, para fazer análises...»
Talvez Ana tenha razão quando garante que saber da infecção fez dela uma pessoa melhor, «menos egoísta», mais capaz de apreciar a vida e os seus suaves milagres. Mesmo se admite que nunca falou do assunto à família nem aos amigos: «Não estão preparados.» Mesmo se está certa de que, caso os técnicos de medicina do trabalho que lhe comunicaram o resultado do teste derem com a língua nos dentes, a «chacinam» na empresa. Mesmo assim. «Não sinto isto como um problema. Às vezes penso que as pessoas com cancro, por exemplo, têm uma terapêutica mais pesada.»
Teresa tem a mesma idade que Ana tinha quando se descobriu seropositiva - 29 anos -, mas já sabe desde os 26. Descobriu da pior maneira, quando estava grávida do primeiro filho. «O médico do centro de saúde mandou-me com a carta das análises à cara: "Olha o que tu tens".» A seguir, conta, disse-lhe que ela não ia poder ter a criança. «Teve de ser a enfermeira a explicar-me o que as análises queriam dizer. Saí dali tão desesperada que só pensava em matar-me.» Como a enfermeira lhe mencionara a consulta especial da MAC, meteu-se num táxi e foi para lá. Só aí se acalmou. «Disseram-me que não tinha de abortar, que podia tratar-me, que a criança não tinha de nascer com o vírus.»
Dito e feito. O menino, nascido em 2001, está são como um pêro. E Teresa de novo grávida, mesmo se por «acidente». «Não sei como foi, usámos sempre preservativo... Deve ter rebentado.» Seronegativo como 40% dos parceiros das grávidas infectadas seguidas na MAC, o marido de Teresa corre riscos em cada relação não protegida. Um risco que, como sublinha a obstetra Cristina Guerreiro, cresce com o tempo e não é assimilado por todos os homens: alguns recorrem a tácticas mirabolantes, como aquele que, segundo a mulher, «se desinfectava sempre muito bem com álcool após cada relação», outros apostam na hipótese de serem "imunes"... até um dia. Teresa não sabe quem a infectou, nem pensa nisso. Só a preocupa «viver a vida», ultrapassar as dificuldades financeiras que, com o seu ordenado de pouco mais de 400 euros e o desemprego do marido, enfrenta. «Está tudo muito caro», lamenta. «O dinheiro só dá para a renda e para a escola do miúdo. Até os preservativos são caros. Vejo-me à rasca.»
Também Mariana, de 34 anos, a 13 semanas de ter o primeiro bebé, engravidou «por acaso» - sabia-se seropositiva há dois anos. «Como tinha tido muitos namorados, pus- -me a pensar... e fiz o teste.» Começou a terapia logo. Deu-se mal no início, mas agora habituou-se. Consciencializada da necessidade de prevenção, tenta passar a mensagem. «Há muita gente a pensar que está tudo bem, e não está. Mas as pessoas só amarradas com uma corda vão fazer análises. Dizem: isto não vai acontecer comigo. Como é: pode acontecer com outros e com eles não?»