domingo, abril 09, 2006

Sida em Moçambique

É revoltante que não se fala na terrível falta de medicamentos antiretrovirais em Moçambique.

CM 02.04.06

Moçambique é um caso gravíssimo de propagação do VIH/SIDA. Segundo a Igreja Católica, a taxa de infecção é de 30 por cento. Crónica de uma tragédia.

Quando há seis anos escreveu o ‘Pátria Amada’ e espalhou pela partitura as notas que deram melodia a versos como “Moçambique nossa terra gloriosa” – assim começa o hino, Faustino Charruti, então professor na Escola de Cultura de Maputo e um dos mais prometedores compositores de Moçambique –, estava longe de imaginar que em tão curto espaço de tempo seria votado à clausura de quatro paredes pela doença que castiga o sexo sem protecção.

A casa é um rés-do-chão, sem divisórias e com três aberturas, sem portas nem janelas. É em bloco e cimento e sem qualquer revestimento. Começou a fazê-la quando ainda trabalhava e foi a sua sorte, porque assim tem pelo menos um tecto. A maior parte dos que caíram na teia da síndrome da imunodeficiência adquirida vivem na rua ou em barracas imundas, ou camas de degradados sanatórios e indescritíveis hospitais.

Na casa do maestro, na Matola, cidade industrial satélite de Maputo, mal se entra aparece, dando a sensação de ser a única peça de mobiliário, a cama onde o compositor, inactivo, passa quase todas as horas e quase todos os dias. Não é por acaso que faz sempre um apelo, quando aparece alguém por lá, para que lhe arranjem uma televisão, “nem que seja a preto e branco”, de modo a que as horas infinitas de solidão passem mais depressa e pareçam menos sós e menos amargas.

No quintal jaz uma carrinha de 9 lugares, com a frente toda desfeita, ao pé de uma mangueira que já teve melhores dias e folhas mais viçosas. É da seca, porque o clima tem sido padrasto para esta terra e para esta gente. À esquerda, duas capulanas lisas tapam o buraco da latrina.

A única companhia é a mãe, uma senhora na casa dos 70 anos, que passou a viver em função do drama do filho. “Isto aqui não há nada, ele não tem apoio nenhum e se eu não lhe tivesse deitado a mão, ele já tinha morrido à fome”, disse Adélia de Jesus, sem comoção aparente porque, de tanto chorar, “já secaram as lágrimas.”

Os dois voluntários dos ‘Médicos do Mundo’ que, dia sim, dia não o visitam, fazem a mesma pergunta de sempre: “Está melhor, senhor maestro?”, a que ele responde invariavelmente: “Sim, sim, estou muito melhor.” Mas o termómetro não engana e marca 39,2º de febre. Para além disso não tem tomado os medicamentos, pelo que não é de esperar grandes melhoras.

O voluntário João Paulo, que faz dupla com a Francisca, começa a rotineira ‘inspecção’ com a observação da língua. O maestro, que se deixou degradar até ao nível de um qualquer sem-abrigo, é obediente e cooperante.“Eu estou bom, tenho-me sentido muito bem. O que eu queria era mesmo uma televisão”, diz o maestro a todas as interpelações. E jornalistas, coisa rara por estas bandas, arrabaldes profundos da grande metrópole, onde o asfalto ainda não chegou às ruas, são um alvo privilegiado das tentativas, tantas vezes goradas, do maestro: “Se vocês pudessem arranjar-me uma televisão, eu agradecia muito.”

A trabalhar no distrito da Matola desde o ano 2000, com projectos de educação para a saúde e formação de profissionais sanitários, os ‘Médicos do Mundo – Portugal’, iniciaram há três anos, em Fevereiro de 2003, um projecto de cuidados domiciliários para pessoas portadoras de VIH/SIDA, com o objectivo de combater a situação de discriminação e de isolamento social em que vivem os portadores do vírus, em especial as mulheres.

Este projecto tem várias vertentes: proporcionar cuidados paliativos e tratamentos médicos básicos; melhorar as condições nutricionais do doente, através de uma parceria com o Programa Mundial de Alimentação; contribuir com a prevenção, diagnóstico precoce e tratamento de doenças oportunistas (a mais problemática é a tuberculose); capacitar com conhecimentos básicos de saúde os familiares dos portadores de VIH/SIDA, promover a auto-sustentação e dar apoio legal e social.

Em 2005, ao abrigo deste projecto, foram realizadas mais de 7300 visitas domiciliárias aos 244 utentes e seus familiares. A partir deste ano, vai ser dado especial enfoque ao tratamento de grávidas seropositivas e seus filhos. Esta orientação preferencial para as grávidas passa pela introdução da chamada PTV, a prevenção da transmissão vertical.

A enfermeira Nydia Pinzón Fernandes, líder da equipa da Matola, composta por mais de duas dezenas de colaboradores, diz que o projecto “destinava-se ao apoio domiciliário de 150 pessoas. Só que os casos são tantos que, quando ainda estamos a meio, já temos uma lista de 244.” O facto de, para além da questão da saúde, este projecto possuir uma forte componente social, nomeadamente o apoio alimentar, faz com que tenha uma procura fora do vulgar.

“Normalmente as pessoas tendem a fugir aos tratamentos e a tudo o que diga respeito à saúde. Muitas vezes até preservativos recusam. Mas como, graças à colaboração do Programa Mundial da Alimentação, damos apoio alimentar, através do fornecimento gratuito de vários produtos essenciais, temos uma enorme lista de espera”, disse a enfermeira Nydia Fernandes.

Aliás, afirma esta responsável, “depois de integrarem o projecto, as pessoas não querem ter alta. Já temos dado várias altas porque temos de abrir vagas para os casos mais graves, mas é sempre uma batalha muito difícil, já que as pessoas não têm emprego nem dinheiro e sabem que, tendo alta, vão deixar de usufruir do apoio alimentar.”

Para o coordenador dos ‘Médicos do Mundo’ em Moçambique, Aurélio Floriano “a extrema pobreza que afecta a esmagadora maioria do povo moçambicano é o principal entrave no combate ao VIH/SIDA.”

Um dos aspectos mais curiosos deste projecto é o apoio ao cultivo, em pequenas machambas (hortas junto às casas), de vários frutos e legumes, com o objectivo de promover a ocupação do doente e, ao mesmo tempo, ajudar à sua subsistência.

Francisco Luís tem 49 anos, vive sozinho e está, há cerca de um ano, a ser acompanhado pela equipa dos Médicos do Mundo da Matola. Atirado para a desgraça pelas invisíveis teias da sida, já lá vão cinco anos, este pedreiro pesou várias vezes em desistir e pôr termo à vida.

Doente, sem família e afogado pela bebida, Francisco Luís era o antónimo da esperança. Até que um vizinho contou o seu caso aos Médicos do Mundo e tudo mudou. “Eles chegaram cá e perguntaram se eu não queria fazer uma plantação de feijão verde, cenoura, alface e beringela aqui mesmo em frente à minha casa. Fazer uma machamba. Eu apenas ri porque não tinha dinheiro nem para comprar uma sachola. Aí, eles disseram que davam tudo, até as plantas e o adubo; eu só tinha de fazer o trabalho e sujeitar-me aos tratamentos médicos. Não foi fácil porque estava muito mal, fisicamente, mas a força de vontade foi superior e hoje estou muito contente”, contou à nossa reportagem este novo agricultor da Matola. E a verdade é que Francisco Luís é, por assim dizer, um caso de sucesso. A doença está controlada (ele toma, com rigor, os medicamentos contra as oportunistas) e a pequena horta devolveu-lhe a alegria de viver. E até já lhe permitiu ganhar algum dinheiro, com a venda de vinte molhos de cenouras.

“Vinte contos (vinte mil meticais, o que dá cerca de 80 cêntimos). Não é muito dinheiro, mas já dá uma ajuda”, afirma Francisco Luís, reforçando a convicção de que “o caminho é para a frente.” Só no distrito da Matola, os Médicos do Mundo apoiam 30 pequenas hortas como a de Francisco Luís. E em cada machamba há uma nova esperança.

O problema é que nem todos têm a mesma força de vontade. Aliás, a esmagadora maioria deixa-se esmagar pelo peso desta doença maldita.

Três mulheres, com filhos pequenos às costas, dão uma pequena corrida para ver mais de perto a visita do João Paulo e da Francisca ao jovem Agostinho Macambé. É que desta vez há gente estranha e os ‘médicos’ chegaram de carro.

A presença dos repórteres atrai a curiosidade. Mas não a de Agostinho, que mal tem forças para falar. A camisola do Manchester United, que já foi motivo de grande alegria para este rapaz de 25 anos, tapa hoje um corpo inerte e acamado. “Este está à espera da sua hora”, diz Beta Lima, uma rapariga que mora ao lado e que até já andou perdida de amores pelo rapaz da camisola vermelha. “Ele era um moço bonito, simpático e cheio de vida. Gostava de jogar futebol e de namorar”, afirma Beta, com a maior naturalidade do mundo. É que o VIH/SIDA já faz parte do dia-a-dia desta gente, como se fosse uma fatalidade, algo de inevitável. “Isso passa de pessoa para pessoa e ele teve azar”, sublinha Beta, realçando “a sorte” que tem tido pelo facto de ainda não estar infectada.

O Agostinho, aquele rapaz que adorava jogar futebol, passa os dias deitado na cama de um quarto pouco iluminado, paredes-meias com uma capoeira de galinhas. Como vive só, à mercê de cuidados de uma vizinha idosa, que tem “muita pena dele”, os compartimentos da palhota a que chamam casa são usados em funções utilitárias: ao lado do quarto do doente está o galinheiro e onde funcionou uma cozinha guardam-se três ovelhas com ar esfomeado.

“Isto aqui está cheio de gente assim”, diz a jovem Beta, apontando para três casas, ali bem perto, onde também estão acamadas pessoas com sida. “Esta doença é terrível e a pobreza em que o povo vive não ajuda nada”, afirma a jovem que gostava de ser médica “para ajudar todas estas pessoas.”

Agostinho tem o destino traçado. Dentro de alguns meses, um ano, na melhor das hipóteses, fará parte das estatísticas que mancham de morte Moçambique e todos os países da ‘África negra’. Diz a Organização Mundial de Saúde (OMS) que, até 2010, só nesta região do globo, mais de 18 milhões de crianças ficarão órfãs por causa do VIH/SIDA. Diz também a OMS que, a curto prazo, a sida fará mais mortos, em África, do que a fome e as guerras.

APELO DESESPERADO: CURANDEIROS QUEREM AJUDAR

Os ministros da Saúde de 15 países africanos decidiram solicitar a ajuda dos curandeiros na prevenção e combate à propagação do VIH/SIDA. Na declaração final, os governantes consideraram “preponderante” o papel que a medicina tradicional poderá ter na luta contra a doença. Sabendo-se que mais de 60 por cento da população dos países africanos a sul do Sahara recorre com frequência a curandeiros, que quase sempre produzem os medicamentos a partir de ervas e plantas, os ministros concluíram que o combate à sida só tem a ganhar em ter a medicina tradicional como aliada.

A decisão foi bem aceite pelos defensores da medicina tradicional, que se dizem “cansados” de serem considerados charlatães pelos médicos “convencionais”. Kenet Mudine, médico tradicional de Moçambique, refere que “é melhor tentar cooperar com a medicina tradicional do que estigmatizá-la.”

A ideia dos governantes passa pela sensibilização e, até, formação dos curandeiros, de modo a que incentivem os pacientes a utilizarem todos os meios de prevenção da doença, nomeadamente o preservativo.“A maior parte das pessoas não liga às campanhas institucionais, mas segue à risca tudo o que lhes é dito pelos curandeiros das suas aldeias”, disse Luís Sambo, director regional da Organização Mundial de Saúde em Moçambique. Ora, muitos dos praticantes das medicinas tradicionais defendem que as plantas curam todas as doenças e, como tal, também curam a sida.

“O VÍRUS DA SIDA ESTÁ A MATAR A ÁFRICA”

O actual presidente da Conferência Episcopal de Moçambique pede ao Mundo ajuda contra o flagelo.

Como é que a Igreja Católica encara o alastrar sem controlo do VIH/SIDA em Moçambique?
Estamos muitíssimo preocupados. Trata-se de uma epidemia sem controlo, que alastra a uma velocidade impressionante, ao ponto de as estatísticas oficiais pecarem sempre por defeito.

O problema é ainda mais grave?
Muito mais. Pelo que nos revelam as instituições da Igreja que trabalham no terreno, a doença afecta cerca de 30 por cento dos moçambicanos, ou seja, perto de cinco milhões de pessoas.

O que é que se deve fazer para travar a epidemia?
Por razões de ordem cultural, social e económica, a tarefa não é fácil. Também a Igreja tem participado em diversas acções e tem muitas instituições a trabalhar no combate, na prevenção e até nos cuidados aos doentes, mas a missão é assustadoramente gigantesca. Muitas pessoas não acreditam na gravidade da doença e, por razões culturais, colocam as tradições à frente de qualquer coisa.

Não acha que a Igreja devia apoiar as campanhas de promoção do uso do preservativo?
Não nos opomos a essas campanhas, mas defendemos a nossa posição de princípio: a sida não se combate com o preservativo, mas com a monogamia e a abstinência sexual.

Mas tem de haver combate efectivo ao alastrar da doença...
O vírus da sida está a matar a África. É, sem dúvida, nesta altura o nosso maior problema de saúde pública. Temos de apelar à ajuda do Mundo, para que nos ajudem nesta missão.

20 mil funcionários públicos vão morrer até 2010 devido ao vírus da Sida
O Governo de Moçambique estima que, até 2010, vão morrer, vítimas de sida, mais de 20 mil funcionários públicos, entre professores, polícias e técnicos de saúde. Segundo o ministro da Saúde, prevê-se que 9200 professores, 5 mil polícias e 6 mil profissionais de saúde, incluindo enfermeiros, morram nos próximos cinco anos em resultado da doença que afecta 18 por cento da população adulta.

OS NÚMEROS
- 147 mil moçambicanos morreram de sida em 2004
- 95% das infecções devem-se a relações sexuais
- 1,4 milhões de mulheres infectadas com sida

Comments: Enviar um comentário

<< Home

This page is powered by Blogger. Isn't yours?

Enter your email address below to subscribe to Blog do GAT!


powered by Bloglet