terça-feira, outubro 04, 2005
"Têm de tomar medidas drásticas"
DN 04.10.05
Está envolvido na luta contra a sida desde o início da epidemia, há 20 anos. Não se sente às vezes desencorajado?
Tem sido uma mistura de esperança, desencorajamento e raiva. É preciso ter uma perspectiva de longo termo. Se se está à espera de resultados rápidos, não se pode estar nesta área. Porque trata de mexer com sexo, com drogas, com coisas que são muito estigmatizadas... Uma doença transmitida pelo ar, pela tosse, é vista como "decente". Mas um vírus que passa pelo contacto sexual é "vergonhoso". E o que me irrita mais é que continuo a ter hoje as mesmas discussões que no início sobre a discriminação, sobre o estigma, sobre se as pessoas com HIV devem ser envolvidas neste combate... Mas em geral acho que estamos melhor.
No entanto certas visões maniqueístas e discriminatórias, relacionadas com os fundamentalismos religiosos, estão muito mais fortes que há 20 anos...
É verdade que há mais fundamentalismo religioso, tanto islâmico como cristão, o que torna as coisas mais difíceis. Mas as igrejas estão muito mais envolvidas nesta luta que no passado. Não estou a falar das hierarquias, mas dos religiosos que contactam com as populações e com os problemas do mundo real, que vêem os fiéis morrer... Em África, por exemplo, trabalhamos muito com a Igreja Católica, coisa que não sucedia há 10 anos. Antes víamos as igrejas como um obstáculo, agora são nossas aliadas.
Se esquecer o cardeal do Vaticano que disse que os preservativos não impedem a infecção por HIV porque têm buracos...
Isso é inaceitável. Aliás falei com o Vaticano sobre isso e ficou estabelecido que eles não falam sobre materiais de preservativos e nós não falamos de moral e religião. Mas mesmo a nível da hierarquia já assistimos a algumas mudanças.
Desmond Tutu, o bispo anglicano da África do Sul, é um bom exemplo disso.
Temos um poster com ele, com um grande sorriso, a dizer "O sexo é uma dádiva maravilhosa de Deus". É uma excepção... Mas estive nos Camarões, numa reunião de religiosos católicos, e foi uma surpresa. Desde logo porque eu era o convidado de honra. E porque consegui falar de tudo, até de preservativos. Eles defendem a abstinência e a fidelidade, claro, e se toda a gente fizer isso é óptimo, mas...
Como disse na sua intervenção no Fórum Gulbenkian, se eu sou fiel e o meu parceiro não, a minha fidelidade não me serve de nada.
Exactamente. Temos de ser realistas, os nossos programas têm de se basear na realidade da vida das pessoas. Devemos condená-las ou certificarmo-nos de que não são infectadas? Não há maior imperativo moral que o de salvar vidas.
Apesar de a maioria dos infectados em África serem mulheres, são sobretudo os homens que têm acesso ao tratamento. Como é possível?
A sida é um revelador para muitas coisas, e a injustiça é uma delas. Na Europa, com o acesso generalizado ao tratamento, um infectado pode viver uma vida normal. Mas em África e na Ásia trata-se quase sempre de uma sentença de morte. Mais ainda para as mulheres uma das razões por que existe um tão grande problema de sida em África é a desigualdade de género. Como promover o uso de preservativos nesse clima? Em certas sociedades, as mulheres valem menos que um burro. E com a sida a discriminação está a matá-las. Até na Europa, o problema não está resolvido.
Com a agravante de que com o acesso generalizado ao tratamento e o facto de a infecção ter deixado de constituir uma sentença de morte se ter assistido a um afrouxar da luta e da prevenção. As pessoas estão a descuidar-se, a correr riscos... É um paradoxo.
É de facto um paradoxo. O sucesso no combate levou à complacência. Em todos os países ocidentais, os orçamentos para a prevenção baixaram, a pressão dos grupos ligados à sida baixou... Quanto aos comportamentos individuais, há uma certa fadiga dos que se andam a "portar bem" há décadas e uma falta de consciência do perigo por parte dos mais novos, que não viram nenhum amigo definhar e morrer. Depois há as populações migrantes, com quem ninguém se tem importado. E, claro, a subida da infecção nas mulheres, que por razões fisiológicas são mais facilmente infectáveis que os homens.
Resultado uma subida assombrosa na taxa das novas infecções na Europa. Fala de 80% na Holanda. É assustador.
No Reino Unido é o mesmo... Em todo o lado. Os governos europeus têm de acordar. Em Portugal, por exemplo, não sei qual é a situação...
Na zona de Lisboa, a prevalência de HIV nas grávidas é de 1%.
Não sabia disso. Isso é muitíssimo grave. Essa é a definição de epidemia generalizada e significa que o número vai subir mais, a não ser que se tomem medidas drásticas.
Por exemplo?
Tem de haver educação pública massiva, adaptada a cada grupo, a mesma mensagem não serve a novos e velhos, caboverdianos e ucranianos. É preciso trabalhar muito com cada comunidade, e não me parece que isso esteja a acontecer aqui. Sei que a estrutura de luta contra a sida mudou, mas não me interessa muito o tipo de estrutura: o que é importante é que haja recursos financeiros e autoridade. Uma das razões por que vim cá foi para vos alertar: atenção, vocês têm um problema.
Jorge Sampaio defende a criação de uma estrutura europeia de combate à sida. Concorda?
Acho que é importante que haja, a nível europeu, uma acção concertada, e que a Comissão Europeia desempenhe um papel relevante numa luta que deve ser transnacional. Porque se todos os países estiverem a fazer tudo certo e um não, esse vai ser um foco de infecção para os outros. Mas sou contra a burocracia e a favor da utilização de estruturas já existentes.
Há outra infecção muito grave na Europa, a hepatite C, com muitos casos de co-infecção com o HIV e vias de transmissão coincidentes. O combate às duas deve ser agregado?
Na Europa, certamente, pela importância do uso de drogas por via endovenosa nesta área. Noutros continentes não faz tanto sentido.
Tem oito mil milhões de dólares para lutar contra a sida no mundo e precisava do dobro. Mas tem havido cortes nos programas de saúde reprodutiva que também afectam esse combate. Os EUA deixaram de dar dinheiro para o Fundo da ONU para a População, alegando que promove o aborto...
O que se passa é que nos EUA há uma guerra cultural neste momento a propósito do sexo, que espero não seja exportada para outros países. Mas os EUA são também o doador número um para os programas contra a sida, tiram num sítio e dão no outro. Não é a preto e branco...
Defende a necessidade de uma liderança forte e mensagens incontroversas neste combate. Mas até na ONU há contradições a Onusida defende a redução de danos no que respeita ao consumo de drogas, o Órgão de Controlo de Estupefacientes opõe-se...
É verdade e é uma confusão. Mas as políticas da ONU são decididas pelos países membros. Que dizem coisas diferentes em sítios diferentes. Felizmente, pouco a pouco vêem-se mudanças. Na China, por exemplo, começa a haver abertura para a redução de danos. Temos de esperar... E continuar a defender o que consideramos justo e certo é o que eu faço.
Parece que para obter sucesso nesta luta é necessário criar novos paradigmas culturais...
Sim, absolutamente. Na forma de lidar com o fenómeno das drogas e com os diversos comportamentos sexuais - não é possível combater a sida num clima de homofobia, por exemplo - e na questão fundamental da igualdade de género. Mas eu não sou dos que acham que antes de fazer seja o que for temos de erradicar a pobreza e certificarmo-nos de que todos os homens e mulheres são iguais, porque se esperarmos por isso estaremos todos mortos.