quarta-feira, dezembro 15, 2004

O primeiro de Dezembro num país de cromos, de mediocres, de preconceitos e de moralismos

Editorial Boletim da Abraço

O DIA MUNDIAL DA SIDA, o primeiro de Dezembro, faz parte do calendário da nossa civilização há uns vinte anos. O mesmo é dizer que a pandemia do VIH/SIDA faz parte do nosso quotidiano há mais de duas décadas. É um facto que, ao longo destes anos, assistimos a verdadeiras revoluções no plano científico que se traduziram no prolongamento da vida e na melhoria da qualidade de vida de muitos milhares e milhares de pessoas seropositivas. Concomitantemente, assistimos também, por negligência de todos os dirigentes mundiais e por deliberação da indústria farmacêutica, à morte absurda de milhões de adultos e de crianças seropositivos e pobres. A doença que dá pelo nome de miséria e que, em alguns países, anda de mãos dadas com a guerra, com a fome, com o VIH/SIDA, com a malária e com a tuberculose, entre outras, “explica” a dimensão incontrolável da pandemia; porém, que nome havemos de dar à maleita que grassa em Portugal e que coloca o nosso país praticamente ao mesmo nível do continente africano, no que respeita a taxas de prevalência e de incidência do VIH/SIDA?

A acreditar nas doutas palavras do responsável de missão da CNLcSIDA, o problema decorre do facto de as instituições responsáveis pela Saúde, nomeadamente pelo controlo da infecção, não terem ainda conseguido entrar no «Portugal profundo» com as suas campanhas de prevenção, pelo que «há que mudar a estratégia, trabalhar com as Juntas de Freguesia, usar os recibos de ordenado, trabalhar com as telenovelas» (em Diário de Notícias, de 14 de Outubro).

Mas qual foi exactamente a estratégia da CNLcSIDA em 2004?
Aquando da sua nomeação, o senhor professor Meliço-Silvestre advogava que era preciso aproveitar os ídolos do Euro-2004 e o próprio evento em si para sensibilizar os jovens e a população em geral. Onde está a avaliação destas campanhas de prevenção?

Defendia também que era preciso rastrear Portugal, ainda que sectorialmente, para se conseguirem obter dados fidedignos a nível epidemiológico. A respeito dos mediáticos e duvidosos inquéritos e rastreios, pouco ou nada se sabe, excepto a informação que foi revelada por ocasião do desfecho do V Congresso sobre SIDA, organizado pela APECS e pela CNLcSIDA, que decorreu na Figueira da Foz, entre 10 e 13 de Outubro, p.p.: segundo Meliço-Silvestre, nos 4.700 alunos1 do ensino superior que voluntariamente se submeteram ao rastreio não foi detectado caso algum de infecção pelo VIH, muito embora tenha sido detectada hepatite (a variante de hepatite e o número de casos não foram esclarecidos).

O senhor professor adiantou, porém, «que os dados não podem ser extrapolados porque as análises foram voluntárias», sendo «possível que os seropositivos as evitassem». Comentários para quê?

O senhor presidente da CNLcSIDA não se cansa de referir que não é burocrata e que odeia burocracias. Talvez seja por isso que, apesar de coordenar a Unidade de Missão responsável pela luta contra a SIDA em Portugal, seja avesso a Planos Estratégicos, e, entre muitas outras coisas, desconheça o que se passa nos hospitais portugueses, que não o seu (por exemplo, sobre a disponibilização da profilaxia pós-exposição), os resultados de estudos em meio hospitalar sob a própria chancela da CNLcSIDA (nomeadamente sobre a seroprevalência nas grávidas em Portugal, facto que gerou o tal “folhetim de discórdia entre Meliço Silvestre e Lino Rosado” reportado pela jornalista Fernanda Câncio, do DN).

Fechamos o ano a reiterar a pergunta formulada no editorial de Janeiro-Fevereiro: “Onde está Wally?”, convictos de que 2004 foi (mais) um ano perdido no controlo da infecção pelo VIH em Portugal.

A incógnita quanto a 2005, é mera figura de retórica, apesar de Meliço-Silvestre prometer um «balanço das políticas desenvolvidas para daqui a um ano». Mas que políticas são estas e qual o Plano em que se integram? Será que vamos finalmente ver cumpridas as medidas há muito anunciadas, ainda que sem critérios definidos, como, por exemplo: 1 – o novo Kit de injecção de drogas; 2 – o Kit para homossexuais; 3 – a educação sexual nas escolas; 4 – o preservativo feminino; 5 – a formação dos técnicos de saúde de cuidados primários; 6 – os estudos nos diversos sectores da população; 7 – as medidas contra a discriminação das pessoas seropositivas, no local de trabalho2 e não só; 8 – a profilaxia pós-exposição não profissional; 9 – as restrições à compra de novos medicamentos pelos hospitais SA?

A ignorância geradora de discriminações várias é generalizada e radica, na sua essência, na mentalidade dominante, também porque a infecção pelo VIH/SIDA é uma infecção que está relacionada com os comportamentos das pessoas. E é por causa desta pescadinha de rabo na boca, por nos considerarmos “a salvo” do VIH/SIDA – é factual a imagem, socialmente construída, de que o vírus só afecta os drogados delinquentes e os sexualmente promiscuous (segundo Meliço-Silvestre, nesta última “categoria” encontram-se actualmente os idosos) –, e por causa de as políticas governamentais serem sobretudo listagens de medidas avulsas, traduzindo tão-somente os caprichos, bem como a inépcia, de quem as propugna e manda executar, que somos o país que apresenta uma das mais altas taxas de infecção pelo VIH/SIDA, entre a União Europeia.

E porque somos um país pobre (o que não obriga a que sejamos probrezinhos, isto é, medíocres, moralistas e irracionais), há que saber gerir pragmaticamente os recursos que, de facto, estão ao nosso alcance para combatermos a pandemia. Lutemos em prol de políticas de prevenção e de saúde estruturadas em torno do princípio fundador do respeito pelos direitos humanos.

1 Em rigor, o estudo efectuado pela CNLcSIDA não é do conhecimento público. Daí que surjam dúvidas a respeito do número de estudantes abrangidos, tanto mais que, a 23 de Outubro último, Meliço-Silvestre referia, na RTP, que tinham sido umas centenas de estudantes de Medicina da Madeira que se tinham voluntariamente submetido ao rastreio.

2 Queremos acreditar nas boas intenções que presidiram à constituição da Plataforma Laboral contra a SIDA, no passado dia 21 de Outubro.

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