sexta-feira, dezembro 03, 2004

A Morte à Sorte

Editorial Público 1.12.04

Há, em Portugal, o terrível hábito de pesar as catástrofes com uma balança que não pertence a ninguém. Sucede com os acidentes rodoviários, tidos por uma "epidemia social" dificilmente controlável; sucede também com o HIV, como se constata pelos estudos e inquéritos agora divulgados, a propósito de mais um Dia Mundial de Luta contra a Sida que hoje se assinala em todo o mundo. Pesam-se as consequências, iludem-se as culpas. Talvez porque os culpados são demasiado vulgares. Talvez porque são apenas demasiados.

Em entrevista hoje ao PÚBLICO, Fausto Amaro, responsável pelo Centro de Estudos da Família do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, põe o dedo na ferida quando aponta: "As pessoas que vêem a sida como uma doença transmissível nem assim têm um comportamento correcto. Esses portugueses vêem o mundo como uma zona perigosa onde é preciso ter sorte. Pensam: 'Nunca me aconteceu porque tenho sorte.' E acabam por ter um comportamento divorciado da informação que possuem." Um exemplo, divulgado ontem: num inquérito a 4693 estudantes de todo o país, mais de um terço (38,8 por cento) admitiram não ter usado preservativo na última relação sexual, mesmo se essa relação (10 por cento) foi com um parceiro ocasional.

Por falta de informação? Errado. Nunca como hoje houve tanta informação disponível sobre a sida, as suas causas e consequências, na Internet, em livros, em folhetos, em publicações generalistas e especializadas. No entanto, apesar de os inquiridos serem, segundo os responsáveis pelo inquérito (encomendado pela Comissão Nacional de Luta Contra a Sida), "uma casta privilegiada" em matéria de informação, preferem o jogo da sorte.

É como no caso das mortes na estrada: as causas são por demais conhecidas, mas nem a divulgação dos mais terríveis acidentes de automóvel, com as mais absurdas causas e brutais consequências, chegam para evitar que, todos os dias, milhares de portugueses arrisquem por conta própria o seu jogo da sorte. A esmagadora maioria sai de casa e volta ilesa. Mas há quem veja transformada a sorte em morte. Para isso, não há campanhas que cheguem.

É preciso que cada cidadão se sinta responsável pela sua própria vida e pela dos que o rodeiam. Fausto Amaro também aqui acerta, quando diz: "Todos os estudos nos mostram que não é [apenas] o conhecimento que altera o comportamento. Para que isso aconteça é preciso, para além da informação, querer mudar a atitude. Ou seja, haver predisposição interna da pessoa para agir. Finalmente, é preciso decidir mudar. Tem de haver um comprometimento da pessoa consigo mesma para mudar."

Predisposição para mudar? Como? Quando nas coisas mais simples, onde não está em risco a vida de ninguém, o comportamento da maioria é inacreditável? Quando nos ecopontos se deixa cartão no lugar do vidro, plástico no lugar do cartão e lixo por todo o lado? Quando se deitam, sem remorso, cigarros acesos da janela do carro para matas secas pelo sol? Quando se trata com o maior desleixo tudo o que diz respeito à comunidade e se reclamam direitos sociais sem a contrapartida dos respectivos deveres? Sorte? Morte? Para muitos pouco importa. Na verdade, estão próximas: basta mudar uma letra.

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