quarta-feira, dezembro 13, 2006

Mais uma vez os antiretrovirais nas farmácias privadas - parte I

por: Pedro Silvério Marques, membro do Conselho Consultivo do GAT
publicado em: "Acção e Tratamentos" - GAT, nº2, Jan-Fev 2007


I – As declarações do Ministro da Saúde

No dia 21 de Outubro o Sr. Ministro da Saúde anunciou, no encerramento do 8º Congresso Nacional das Farmácias, em Lisboa, que a tutela está a preparar medidas que permitam passar a dispensa dos, entre outros, medicamentos ARV, até agora de dispensa exclusiva nas farmácias hospitalares, para farmácias interessadas, entendendo-se farmácias privadas.

De acordo com vários meios de comunicação, o Ministro referiu:
- “O controle e administração destes medicamentos – que são poderosos, agressivos, essenciais e dispendiosos – tem cabido aos hospitais do SNS. Não há razão nenhuma para não ser partilhada pelas farmácias”.
- O Ministério estuda o processo de “administração de doses fraccionadas” classificando esta como uma "medida que representa uma revolução organizativa com elevado potencial de poupança", popular e que representa economia directa para os cidadãos.
- Disse, ainda, que “o Ministério da Saúde gostaria de iniciar o processo nas farmácias hospitalares”, dando assim a entender que a administração de doses fraccionadas se alargaria, posteriormente, às farmácias privadas.
- Sublinhou, na mesma intervenção, algumas das regras a cumprir pelos farmacêuticos: “É necessário um controlo que passa pelo doente tomar, quando possível, o remédio na presença do farmacêutico, haver um registo individual para conhecer o grau exacto de adesão à terapêutica e uma comunicação ao hospital onde o doente se encontra em tratamento ambulatório, para que as decisões clínicas subsequentes sejam informadas.”
- Afirmou, por fim, que esta medida representa para as farmácias "o regresso a um mais autêntico acto farmacêutico, mas que as prejudica financeiramente, alertando para que será necessário equilibrar a segurança na distribuição e a prevenção na contrafacção com a confiança que o paciente não pode perder na embalagem.

Destas declarações pode concluir-se:
1. Que o Ministro da Saúde não encontra qualquer razão para não alargar às farmácias privadas a dispensa de antiretrovirais;
2. Que o Ministro da Saúde quer, por razões de elevado potencial de poupança, que a dispensa e a toma de ARV passe a ser em doses fraccionadas e, sempre que possível, presencial;
3. Que o Ministro da Saúde quer iniciar este processo nas farmácias hospitalares alargando-o, posteriormente às farmácias privadas;
4. Que o Ministro da Saúde quer, para se conhecer o grau exacto de adesão à terapêutica, que exista nas farmácias privadas um registo individual dos doentes em ambulatório;
5. Que o Ministro da Saúde quer prejudicar financeiramente as farmácias.


Mais recentemente, nos eventos que assinalaram o Dia Mundial da Sida, o Ministro da Saúde voltou a referir esta sua intenção, se bem que de forma mais modulada. São demasiadas declarações sobre temas complexos que não podem ser analisados e respondidos com argumentos breves e simples, como aconteceu na imediata sequência das declarações de Outubro.

Parece-nos vital, para que possa ser tomada uma posição com base nas posições técnicas e nos estudos já efectuados, que o Ministério da Saúde esclareça os antecedentes e consequências desta iniciativa e que seja possível discutir transparente e publicamente as medidas que estão a ser preparadas.

Enquanto aguardamos tal esclarecimento e tal discussão, que já pedimos por mais de uma vez, iniciamos, neste número de Acção e Tratamentos a nossa análise e comentários.


II – Alguns factos

A Associação Nacional de Farmácias (ANF), depois de ter visto recusada, por duas vezes, a sua proposta de distribuição de ARV – primeiro pelo Conselho Consultivo da Comissão Nacional de Luta contra a SIDA, na reunião de 17 de Setembro de 2002, depois no “Relatório do Grupo de Trabalho para regulamentar a dispensa por parte das farmácias de oficina de alguns medicamentos actualmente dispensados exclusivamente na farmácia hospitalar” aprovado em 27 de Janeiro de 2005 pela então Secretária de Estado da Saúde, Dr.ª Regina Ramos Bastos, – vê agora o Ministro declarar que não encontra qualquer razão para não alargar às farmácias privadas a dispensa de antiretrovirais.

Conhecerá Sexa. aqueles documentos e as razões e fundamentos para aquelas recusas?

Lembremos que a ANF começou a manifestar, pelo menos publicamente, o seu interesse na comercialização destes medicamentos em 2002, ideia para o que obteve o apoio da, então, CNLcSIDA, mas que foi rejeitada pelo Conselho Consultivo daquela Comissão.

Em 2003 o Ministério da Saúde, que já então parecia inclinado a satisfazer tal interesse, nomeou o Grupo de Trabalho acima mencionado – de que faziam parte dois representantes da Ordem dos Farmacêuticos, dois da ANF e um da Associação das Farmácias de Portugal – grupo esse que, no seu relatório final de Janeiro de 2005 rejeitou, por unanimidade e mais uma vez, esta possibilidade.

A partir de Maio deste ano e depois de uma declaração manifestamente errada (e grosseiramente errada) atribuída ao Ministro Correia de Campos – “o nosso país consome 5% dos gastos públicos em anti-retrovíricos” – começaram a aparecer nos meios de comunicação, de forma consistente e sistemática, notícias avulsas, sem identificação de origem ou fonte, que atribuíam o déficit do SNS ao elevado custo dos medicamentos contra a sida, cancro ou hepatites.

Em Julho, em entrevista à “Sábado”, o Ministro Correia de Campos, referindo-se à infecção pelo VIH e à SIDA anunciava – entre outras medidas e projectos que levantavam e levantam sérias reservas – que, aquando das negociações do novo estatuto das farmácias, tinha aceite “de imediato” a proposta da ANF para distribuição de ARVs a um “preço nominal”, justificando tal medida numa pretensa existência de um “mercado paralelo de ARV em Portugal”.

Finalmente anuncia agora que não encontra qualquer razão para não alargar às farmácias privadas a dispensa de antiretrovirais e que já estão em preparação as medidas para concretizar tal alargamento.

Desconhecem-se, naturalmente, tais medidas mas o conjunto das declarações do Sr. Ministro indicia, para além do desconhecimento e/ou desinformação sobre o que é a terapêutica ARV, que não tem em consideração a principal preocupação do relatório do Grupo de Trabalho criado pelo seu antecessor: a necessidade de monitorizar a utilização da terapêutica e condicionar a prescrição para evitar as consequências do uso indevido dos anti-retrovíricos – os tais medicamentos que são "poderosos, agressivos, essenciais e dispendiosos".

Note-se que, dos quatros critérios propostos pelo GT para a classificação dos medicamentos como de “uso exclusivo hospitalar”, apenas o primeiro – medicamentos cuja preparação, administração ou em relação aos quais a eliminação de resíduos requer condições especiais (radiofármacos, citotóxicos, medicamentos derivados do sangue e plasma...) – não é aplicável aos ARV.

Todos os restantes, e não só o que o GT entendeu aplicar-se especificamente aos ARV, que dá como exemplo, se aplicam ou se podem aplicar aos ARV, pois são medicamentos em relação aos quais:
- por razões de segurança se justifica a necessidade de monitorização dos doentes durante a administração do medicamento;
- por razões de saúde pública se reconhece a necessidade de monitorizar a utilização da terapêutica e condicionar a prescrição para evitar as consequências do uso indevido (anti-retrovíricos);
e que, simultâneamente, são
- inovadores, utilizados de forma restrita em grupos de doentes muito especiais, para os quais existe ainda informação limitada sobre a sua efectividade e segurança e que, assim, exigem um período de vigilância adicional.



III – Alguns argumentos

Tendo, inicialmente, invocado a existência de um mercado paralelo de medicamentos – cuja evidência se desconhece – e, depois, a maior comodidade para os doentes – cuja opinião não foi, como seria de esperar, pedida – como principais justificações para o alargamento da dispensa às farmácias privadas, o Ministro, invocando agora razões de elevado potencial de poupança, pretende que a administração de ARV (dispensa e toma) passe a ser feita em doses fraccionadas e, sempre que possível, presencial.

Este processo seria iniciado nas farmácias hospitalares e alargado, posteriormente, às farmácias privadas. Está convicto que esta será uma medida “popular” – popular? – e que representará uma “economia directa para os cidadãos” – directa?

Embora se registe que foi deixado cair no esquecimento o tal mercado paralelo, não parece ser mais objectiva a opinião que manifesta de que a toma fraccionada nas farmácias – privadas ou públicas, note-se – se vai traduzir numa maior comodidade para os doentes.

Também não se entende onde está a popularidade da medida – junto de quem? Dos doentes – obrigados a ir às farmácias ainda mais vezes – todos os dias, várias vezes ao dia – do que vão agora? Junto do público em geral – a que propósito? Por representar um “castigo” adicional para as pessoas com VIH ou com SIDA?

Uma economia directa para os cidadãos? Directa, nunca – nenhum cidadão não paga directamente os ARV, seus ou dos outros!

Indirecta talvez, se a toma fraccionada e assistida permitir reduzir o consumo – menos medicamentos sobrantes quando há uma alteração de prescrição ou os medicamentos deixam de ser tomados, por internamento ou morte do doente – ou ainda se se estiver, outra vez, a pensar no tal mercado paralelo.

É, naturalmente, difícil discutir com alguma razoabilidade e objectividade o tipo de argumentos utilizados pelo Ministro da Saúde. Talvez por isto as várias personalidades chamadas a comentar as declarações do Ministro – Bastonários da Ordem dos Médicos e da dos Farmacêuticos, Coordenador do VIH/sida, alguns médicos – quer fossem a favor, contra ou assim, assim, se tenham limitado a dar as suas opiniões pessoais sobre a distribuição dos ARV nas farmácias privadas.

Foi claro nas, poucas, discussões públicas que se seguiram às declarações do Ministro da Saúde que a maioria dos intervenientes – qualquer que fosse a sua posição em relação às medidas anunciadas – declaravam, todos e sempre, prosseguir os mesmos objectivos:
- O melhor interesse e comodidade dos doentes;
- A maior e melhor adesão terapêutica e, consequentemente, o menor risco para a saúde pública.

Mas, na falta ou ignorância de uma argumentação objectiva e fundamentada, todas as discussões acabaram baseadas nas opiniões, pessoais e subjectivas, de como aqueles objectivos, aparentemente comuns, seriam melhor conseguidos.

Um exemplar exercício do que se pode designar por “achismo”.

Assim, os que estavam a favor da medida anunciada achavam que significava maior comodidade dos doentes – incluindo a sua “capacidade de escolher o fornecedor dos medicamentos” – os que a ela se opunham achavam que aumentava o risco de quebra de confidencialidade e discriminação dos mesmos.

Aos que achavam que a medida – incluindo, por vezes, a TDA – conduzia a uma maior adesão terapêutica e, consequentemente, a uma redução de riscos para a saúde pública, opunham-se os que achavam que o de risco para a saúde pública ia aumentar – porque, deixando o acompanhamento de ser centralizado nos hospitais, acham que pode diminuir a adesão, aumentando as resistências e a sua eventual transmissão, e porque deixam de ser monitorizados e controlados os efeitos secundários.

Acrescentaram-se, ainda, mais algumas opiniões porque se achava que a anunciada medida se deveria ou não aplicar:
- “Que se faz lá fora, em países que souberam adaptar-se às mudanças da epidemia”;
- “Que os hospitais públicos (alguns) fazem o acompanhamento – por telefone – da adesão”;
- “Que a adesão terapêutica, em Portugal, é baixíssima”;
- “Que o relatório do Grupo de Trabalho de 2004 não é um relatório técnico”;
- “Que o modelo da toma assistida de Metadona nas farmácias privadas é um sucesso”.

Em relação a estes argumentos gostaríamos de dizer, em primeiro lugar, sobre o interesse e a maior comodidade para os “doentes”, que seria interessante que estes tivessem oportunidade de se pronunciar (o que até deve fácil de fazer) em vez de tantas pessoas, naturalmente bem intencionadas, acharem o que é melhor ou mais cómodo para eles.

É claro que teriam de se pronunciar sobre uma proposta de modelo concreto, não sobre uma ideia mais ou menos abstracta como até agora é conhecida e de que se desconhecem os contornos e modalidades de aplicação.

Saberíamos então se privilegiam a comodidade de ir levantar – alguns? todos? – os seus medicamentos ARV nas farmácias privadas – em todas? só em algumas? quais? – ou se preferem continuar a abastecer-se, exclusivamente, na farmácia do hospital em que são acompanhados, favorecendo a reserva da sua privacidade e confidencialidade do seu estado de saúde e concentrando num único local e entidade todo o seu acompanhamento clínico, laboratorial e farmacêutico.

Registemos, a propósito que, quando foi publicada a entrevista do Sr. Ministro já referida, o GAT lhe solicitou uma entrevista para esclarecer este assunto. Entrevista que já foi marcada e desmarcada duas vezes. Será que se quer mesmo saber a posição das pessoas com VIH ou com SIDA?

Em relação às consequências para a saúde pública, à adesão e ao aparecimento de estirpes resistentes do VIH, mais uma vez, o assunto é demasiado complexo para ser resolvido através da dispensa dos ARV nas farmácias privadas.

Desconhecemos os estudos que em que se fundamentou o Coordenador do VIH/sida para declarar que a adesão, em Portugal, é baixíssima.

Também não entendemos as razões que assistiram ao Bastonário da Ordem dos farmacêuticos para entender que o Relatório do Grupo de Trabalho não seria um relatório técnico.
Não sabemos se são mais dois achismos.

Confessamos que também desconhecemos qualquer hospital em que a respectiva farmácia tenha um papel mais proactivo – pelo telefone ou de qualquer outra forma – no acompanhamento da adesão de cada doente.

Mas parece-nos evidente que a medida apresentada pelo Ministro da Saúde para combater a não adesão – medida que todos os que foram chamados a comentar as suas declarações fugiram a analisar – é a dispensa e a toma fraccionadas e assistida.

Parece-nos haver (achamos que há) dois erros graves no raciocínio do Sr. Ministro.

1. Em primeiro lugar o problema das estirpes resistentes não pode, nem deve ser unicamente ligado à adesão.
a. Desde logo porque a capacidade de mutação do VIH é independente da adesão. Mesmo quando não se falha uma única toma de qualquer medicamento ARV, o VIH, também pela pressão terapêutica a que está sujeito, sofre mutações que o podem tornar resistente à medicação que se está a tomar – é um problema específico da infecção.
b. Depois porque há pessoas que se infectam (ou re-infectam) com vírus resistentes – é um problema de prevenção.
c. Depois, ainda há clínicos a prescrever tratamentos sub-óptimos – é um problema de formação dos clínicos.
d. Ainda porque, não estando disponíveis, ou não sendo utilizados, os meios que permitem avaliar e dosear os ARV para cada pessoa que os está a tomar, a sua eficácia terapêutica pode ser insuficiente para evitar o aparecimento de resistências – é um problema de acompanhamento e monitorização.
e. Há ainda todas as pessoas com VIH que, ao longo do tempo, seguiram, sem falhas de adesão ao(s) seu(s) tratamento(s), o estado da arte clínico. O que significa que fizeram, iniciando-as, eventualmente, demasiado cedo, monterapias, biterapias, isoladas ou sequenciais, utilizando medicamentos menos potentes ou insuficientemente potentes para reduzir, significativamente, a replicação do vírus, de acordo com o que se sabe e recomenda hoje – e este é um problema sem solução.

2. Em segundo lugar, a dispensa e a toma fraccionadas e, sempre que possível, assistidas – e entendemos fraccionada, mesmo que o Sr. Ministro o não tenha explicado, quando os medicamentos são dispensados, um a um, no momento e exclusivamente para cada toma – ignora alguns aspectos básicos da terapêutica ARV.
a. Qualquer orientação terapêutica validada considera essencial uma combinação de, no mínimo, três medicamentos ARV.
b. Cada um desses medicamentos tem orientações de toma diferentes – por vezes, muito diferentes mesmo – quanto à frequência diária (uma, duas, três ou quatro vezes ao dia) e quanto às condições em que têm de ser tomados (em jejum, X horas antes de uma refeição, com uma refeição ligeira, com uma refeição normal, com ou sem gorduras, com ou sem determinados líquidos ou sumos de frutas, Y horas após uma refeição, ligeira, normal, etc.).
c. Nenhuma farmácia – seja hospitalar ou privada – em que o Sr. Ministro esteja a pensar implementar esta toma fraccionada tem horário ou condições para satisfazer estes requisitos. Talvez seja por isto que ninguém defendeu esta ideia “inovadora” – e, claro, a tal “comodidade” também parece totalmente hipotecada com este sistema.

(...)


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