sexta-feira, novembro 25, 2005
Precisamos de uma sociedade “incivil”
EATN Outono 2005
Precisamos de uma sociedade “incivil”
Na história da epidemia da SIDA, a maior parte dos ganhos foram conseguidos quando a sociedade civil se tornou um pouco “incivil”, ou seja, quando exigiu ser respeitada nos seus direitos e não ser discriminada, quando exigiu o acesso a agulhas esterilizadas ou o acesso aos tratamentos, entre outras coisas. Não se trata de um fenómeno que tenha ocorrido apenas no mundo desenvolvido: vemos muitas pessoas com VIH/SIDA corajosas, de todos os cantos do mundo que, em conjunto com os seus defensores, reclamam aquilo a que têm direito. Mas não por pertencerem à “sociedade civil”, antes porque pertencem à família humana, da qual todos fazemos parte.
Penso que a “sociedade civil”, isto é, as organizações que nos têm representado no quadro das Nações Unidas (NU), se têm vindo a tornar demasiado civis, demasiado dóceis – falam a linguagem das NU, trabalham dentro dos seus protocolos, são demasiado contemporizadoras com uma situação que, a julgar pelo número de mortes que se vai acumulando em redor do mundo, só pode ser apelidada de insana.
Mas alguém fica surpreendido pelo facto de as agências das NU e os seus estados-membros nos tratarem de forma meramente simbólica? Que poder temos junto deles quando permanecemos em silêncio ou quando os “nossos” líderes lembram aos activistas que “têm apenas 2 minutos para falar!” (como aconteceu na UNGASS, em Junho) quando esses activistas viajaram durante dias até chegar a Nova Iorque e quando funcionários de baixa-patente de governos que nada fazem falam durante 10, 20, 30 minutos sem dizerem nada?
O que têm eles a temer por parte deste rebanho de ovelhas em que nos transformámos? Qual será o limiar de miséria humana que nos fará levantar e, todos juntos, confrontarmos as Nações Unidas, as grandes farmacêuticas e os nossos próprios governos com o que eles deixaram que acontecesse nos últimos 25 anos? Sim, algumas pessoas vivem em sítios onde denunciar é perigoso, e contudo elas fazem-no! Muitas pessoas, porém, vivem em países em que falar é fácil, e onde se fala, até, por tudo e por nada. Mas em relação a esta situação, ficamos calados ou, pelo menos, não ultrapassamos os limites do discurso aceite, e sempre de forma polida.
A “sociedade civil” transformou-se na nossa própria auto-justificada e retro-alimentada burocracia. Tornámo-nos profissionais da sociedade civil, fizemos disto uma carreira, a comunidade dos burocratas da SIDA. A mensagem da HDNET, por exemplo, é tão auto-complacente e condescendente que quase me faz chorar. Não analisa os seus próprios pressupostos, nem o nosso papel no meio disto tudo. Só fala de mais reuniões, de mais documentos, e de como todo esse trabalho pode ser facilitado pelos nossos líderes. Temos feito as mesmas coisas uma e outra vez e continuamos à espera de ser bem sucedidos. Quando é que vamos parar e pensar no modo como temos feito as coisas e no que as PCVS (pessoas com VIH/SIDA), os UDs, os HSH (homens que têm sexo com homens), as mulheres e os trabalhadores do sexo realmente precisam e querem, e quando criaremos um movimento que realmente responda a essas necessidades?
OK, mas para quê levantar estas questões? É muito mais confortável sentarmo-nos em gabinetes o dia todo, sem ter que prestar contas a ninguém, seguros num posto de trabalho onde se está há anos, desejando que chegue a reforma, prestando umas consultadorias lucrativas, e indo para a cama à noite de consciência tranquila, sabendo que se travou o combate certo. Pois é, mas a história vai julgar-nos de outra maneira.
Gregg Gonsalves
Gay Men Health Crisis
Nova Iorque, EUA
Precisamos de uma sociedade “incivil”
Na história da epidemia da SIDA, a maior parte dos ganhos foram conseguidos quando a sociedade civil se tornou um pouco “incivil”, ou seja, quando exigiu ser respeitada nos seus direitos e não ser discriminada, quando exigiu o acesso a agulhas esterilizadas ou o acesso aos tratamentos, entre outras coisas. Não se trata de um fenómeno que tenha ocorrido apenas no mundo desenvolvido: vemos muitas pessoas com VIH/SIDA corajosas, de todos os cantos do mundo que, em conjunto com os seus defensores, reclamam aquilo a que têm direito. Mas não por pertencerem à “sociedade civil”, antes porque pertencem à família humana, da qual todos fazemos parte.
Penso que a “sociedade civil”, isto é, as organizações que nos têm representado no quadro das Nações Unidas (NU), se têm vindo a tornar demasiado civis, demasiado dóceis – falam a linguagem das NU, trabalham dentro dos seus protocolos, são demasiado contemporizadoras com uma situação que, a julgar pelo número de mortes que se vai acumulando em redor do mundo, só pode ser apelidada de insana.
Mas alguém fica surpreendido pelo facto de as agências das NU e os seus estados-membros nos tratarem de forma meramente simbólica? Que poder temos junto deles quando permanecemos em silêncio ou quando os “nossos” líderes lembram aos activistas que “têm apenas 2 minutos para falar!” (como aconteceu na UNGASS, em Junho) quando esses activistas viajaram durante dias até chegar a Nova Iorque e quando funcionários de baixa-patente de governos que nada fazem falam durante 10, 20, 30 minutos sem dizerem nada?
O que têm eles a temer por parte deste rebanho de ovelhas em que nos transformámos? Qual será o limiar de miséria humana que nos fará levantar e, todos juntos, confrontarmos as Nações Unidas, as grandes farmacêuticas e os nossos próprios governos com o que eles deixaram que acontecesse nos últimos 25 anos? Sim, algumas pessoas vivem em sítios onde denunciar é perigoso, e contudo elas fazem-no! Muitas pessoas, porém, vivem em países em que falar é fácil, e onde se fala, até, por tudo e por nada. Mas em relação a esta situação, ficamos calados ou, pelo menos, não ultrapassamos os limites do discurso aceite, e sempre de forma polida.
A “sociedade civil” transformou-se na nossa própria auto-justificada e retro-alimentada burocracia. Tornámo-nos profissionais da sociedade civil, fizemos disto uma carreira, a comunidade dos burocratas da SIDA. A mensagem da HDNET, por exemplo, é tão auto-complacente e condescendente que quase me faz chorar. Não analisa os seus próprios pressupostos, nem o nosso papel no meio disto tudo. Só fala de mais reuniões, de mais documentos, e de como todo esse trabalho pode ser facilitado pelos nossos líderes. Temos feito as mesmas coisas uma e outra vez e continuamos à espera de ser bem sucedidos. Quando é que vamos parar e pensar no modo como temos feito as coisas e no que as PCVS (pessoas com VIH/SIDA), os UDs, os HSH (homens que têm sexo com homens), as mulheres e os trabalhadores do sexo realmente precisam e querem, e quando criaremos um movimento que realmente responda a essas necessidades?
OK, mas para quê levantar estas questões? É muito mais confortável sentarmo-nos em gabinetes o dia todo, sem ter que prestar contas a ninguém, seguros num posto de trabalho onde se está há anos, desejando que chegue a reforma, prestando umas consultadorias lucrativas, e indo para a cama à noite de consciência tranquila, sabendo que se travou o combate certo. Pois é, mas a história vai julgar-nos de outra maneira.
Gregg Gonsalves
Gay Men Health Crisis
Nova Iorque, EUA