sábado, janeiro 21, 2006

Salas de Consumo: Razões e Objectivos

Bioética e comportamentos aditivos
As salas de injecção assistida
Debate
20 de Janeiro de 2006
Aula Magna da Faculdade de Medicina do Porto
Serviço de Bioética e Ética Médica – FMUP
E Associação Portuguesa de Bioética


Salas de Consumo: Razões e Objectivos
Luís Mendão
Fundador da Soma Associação Portuguesa Anti-Proibicionista
Direcção do G.A.T. Grupo Português de Activistas sobre Tratamentos de VIH/SIDA
Comissão de promoção das salas de consumo assistido


Notas prévias
Quero, em primeiro lugar, agradecer o convite para um debate importante em que praticamente me fiz convidar.

Primeira nota polémica (?): o debate é essencial mas não pode servir, e em Portugal muitas vezes serve, para bloquear decisões e escolhas. A ética e o conhecimento têm que ser centrais no debate, processo de decisão e acção das políticas públicas e continuar centrais na avaliação, validação ou correcção das mesmas.
Pensamos que estamos no momento imediatamente anterior à decisão, que espero seja tomada, implementada, avaliada e corrigida em conformidade.

Segunda nota polémica (?): a participação da sociedade civil, através das organizações das pessoas afectadas pelos problemas deveria começar a ser norma nos processos de discussão, planeamento, implementação e avaliação das políticas públicas, não para se substituir ao conhecimento e aos decisores políticos mas contribuir com os seus saberes específicos, Esta participação tem também que ser exigente e deve servir para aumentar a capacidade das organizações não-governamentais para servirem eficazmente as suas comunidades.

Terceira nota polémica (?): Temos que aprender a viver com as drogas.
SOMA designa a droga (possivelmente o cogumelo amanita muscaria) consumida em rituais da antiga Índia, já citada nos Veda, os textos mais antigos da civilização indo-europeia.
É o símbolo da utilização ancestral de drogas e da sua integração cultural e social.
Na generalidade das comunidades, incluindo nas de tradição indo-europeia, registou-se, desde sempre, a utilização de substâncias psicoactivas, o que, muito frequentemente, foi factor da própria coesão social.

O alegado objectivo proibicionista de criar uma sociedade sem drogas é, antes de mais, contrário à compreensão histórica e ao que dela releva quanto ao conhecimento das comunidades e da condição humana. É, simultaneamente, pouco sério, pois a designação de droga, bem como a proibição que se lhe associa, não resulta apenas da avaliação farmacológica ou de apreciação de potenciais danos, mas é principalmente expressão de dogmatismo ideológico e jurídico.

Os resultados das políticas proibicionistas são expressão da ilusão em que os governos e as sociedades têm laborado. À sombra do proibicionismo, consolidou-se o poder económico, social e político do narcotráfico; soldou-se os seus interesses a relevantes actividades legais; provou-se o aumento exponencial do consumo clandestino de droga; propagaram-se algumas das mais graves epidemias contemporâneas: a sida, as hepatites víricas, a tuberculose.

O proibicionismo não só não atingiu, quer no plano nacional, quer no plano internacional, os seus objectivos declarados, como revelou ser, de facto, muito mais pernicioso do que os males que pretendia atingir. O desafio que se coloca é o de criar uma ordem social e política em que se reaprenda a viver com drogas. Trata-se, pensamos, de um empreendimento cívico, ético e civilizacional fundamental.

Introdução
Estratégias de redução de riscos: um imperativo ético.
A repressão e criminalização do uso de drogas foram claramente desenhadas com os objectivos de reduzir os problemas sociais e de saúde pública e individual resultantes do uso e dependência. O problema é que estas respostas simplesmente falharam os objectivos. Pior, em vez de resolver estes problemas, este modelo exacerbou problemas existentes e criou novos.
A proibição e criminalização caracterizou-se (e continua a caracterizar-se) por falhar os objectivos para que foi pensada e promovida como levou à exclusão social dos consumidores de drogas, à delapidação de recursos públicos limitados (hoje mais do que nunca), estimulou o crescimento exponencial do poder e riqueza de grupos de traficantes socialmente destrutivos e violentos e minou o estado de direito, a democracia, o sistema judicial e a saúde pública.

A adopção de uma ética de redução e riscos e de danos reconhece que a resposta proibicionista para o uso de drogas não funciona. A redução de risco não identifica a abstinência como condição para intervir. Mais consideramos não ético condicionar as respostas de públicas de saúde exigindo de um cidadão algo que este não está em condições física e mentais de fazer.

Tal dito, claro que consideramos que para algumas pessoas ou as mesmas pessoas em condições diferentes, a abstinência é um objectivo importante. Enquanto a proposta de redução de riscos não exclui a abstinência como objectivo, questionamos a noção durante muito tempo estabelecida que esta deveria ser a o único objectivo aceitável para qualquer política ou programa de drogas.

A ética da redução de riscos enfatiza o pragmatismo no modo de lidar com os problemas associados com o uso de drogas, por exemplo, em relação à utilização de tratamentos com opiáceos para substituir o uso de heroína clandestina, ou dar acesso a material de injecção estéril para reduzir a partilha de material contaminado e a incidência de infecções por via sanguínea. A prioridade é posta em manter vivos e sem infecções os que escolheram utilizar drogas, manter aberta a possibilidade de desabituação.

A moralização acerca do carácter intrinsecamente maléfico das drogas e do uso é evitado e reconhece-se que muitas das doenças e problemas associados ao uso resultam da resposta social vigente para lidar com o problema.

As salas de consumo seguro são um instrumento fundamental na estratégia de redução de riscos, por isso as nossas associações sentiram a necessidade de apoiar de forma organizada, de modo a exigir a concretização (e não ficar no rol imenso das declarações nunca passadas à prática), a declaração de 25 de Novembro de 2005, do presidente do Instituto da Droga e Toxicodependência, Dr. João Goulão, "Pretendemos instalar salas de injecção assistida em zonas onde esses consumos [de droga por via injectável] se efectuam em condições de extrema degradação” ao defender a instalação de salas de injecção assistida, nomeadamente em Lisboa e no Porto, como alternativa às "salas de chuto em cena aberta".

Salas de consumo: razões e objectivos
As salas de consumo são estruturas dos serviços de saúde criadas para promover e facilitar os contactos e a aproximação com populações específicas de consumidores de drogas em situações de grande risco sanitário, nomeadamente as que consumem drogas injectáveis na via pública.

As enormes carências de cuidados de saúde destas populações não podem ser resolvidas por outros serviços de saúde e constituem um problema para as comunidades locais que, como todos reconhecem, nem os programas sociais e de saúde, nem as polícias têm conseguido ou conseguirão resolver.

As salas de consumo, ou de injecção assistida pretendem dar resposta e resolução aos problemas destas populações e têm como principais objectivos:
1. Estabelecer pontos de contacto com as populações de utilizadores de drogas mais problemáticas;
2. Promover o acesso a serviços sociais, de saúde e tratamento de drogas;
3. Fornecer um ambiente seguro e higiénico para o consumo de droga a fim de reduzir:
- o consumo público de drogas e problemas sociais associados;
- a transmissão de VIH, hepatites e infecções bacterianas;
- a mortalidade e morbilidade associada às overdoses no consumo de drogas.

De acordo com a informação do Observatório Europeia da Droga e das Toxicodependências (OEDT) existem, na Europa, 73 salas de consumo em 40 cidades. A primeira abriu em 1986, em Berna, e a última em Oslo. Existem também salas de consumo no Canadá e na Austrália. Todas as avaliações reconhecem que atingem positivamente os seus objectivos. As salas de consumo seguro tiveram e ainda têm problemas, mas existe hoje suficiente conhecimento acumulado, boas práticas, recomendações e diferentes modelos adaptados a diferentes realidades, para evitar muitos deles.

A situação em Portugal, onde mais de 40.000 utilizadores problemáticos de drogas estão fora dos centros de tratamento e se registam, nos utilizadores de drogas injectáveis, as taxas mais altas da Europa de incidência e prevalência de VIH e Hepatites tornam urgente esta e outras medidas.

Compreendo que continuem dúvidas e perplexidades entre muitos mas penso que todos, os que com honestidade intelectual analisam a situação actual aceitam que temos que assumir decisões corajosas e que deixar tudo na mesma é inaceitável.

Sesimbra 19 de Janeiro de 2005, vinte anos depois de pela primeira vez ter defendido a urgência de criar salas de consumo

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