sábado, fevereiro 05, 2005

Portaria sobre notificação obrigatória da sida põe em causa confidencialidade dos doentes

Realmente, este governo não acerta em nada...
E a CNLCS encontrou logo uma boa desculpa para não dar os números prometidos.
Haverá algum governante neste país que leva a sida a sério?

Público 05.02.05

O sistema de notificação obrigatória do HIV/sida, que foi anunciado pelo Ministério da Saúde como uma forma de melhorar as informações sobre a doença em Portugal, está mergulhado na "confusão" devido a uma portaria publicada pelo Governo na passada terça-feira. O diploma vai ser rectificado. "Um acto irresponsável" que "mexe com a privacidade das pessoas", comenta a Associação Nacional de Saúde Pública.

O HIV/sida passou a ser uma doença de notificação obrigatória no início de Novembro, juntando-se assim a um conjunto de patologias - como a tuberculose, a cólera e a difteria - que têm que ser declaradas pelos médicos às autoridades de saúde.

Mas considerou-se que a sida não podia ser tratada como as outras porque se colocava o problema de confidencialidade e do anonimato dos doentes. O formulário de notificação das restantes doenças é enviado à Direcção-Geral de Saúde (DGS) e obriga à identificação e localização do doente, para a realização de eventuais inquéritos epidemiológicos para a localização do foco da infecção.

Na sida, a notificação seria diferente. O ministério anunciou assim que passaria a ser de declaração obrigatória mas teria um formulário próprio, anónimo e confidencial, apenas identificado com um código que tinha sido devidamente aprovado pela Comissão Nacional de Protecção de Dados. A notificação continuaria, tal como se passava antes de ser de declaração obrigatória, a fazer-se para o Instituto Nacional de Saúde Pública Dr Ricardo Jorge (INSA).

Portaria não garante confidencialidade
Até aqui tudo bem. O que acontece é que na portaria nº 103/2005 que o Ministério da Saúde fez publicar em "Diário da República", a 25 de Janeiro, diz-se que a notificação do HIV/sida se faz em harmonia com a lei nº 2036 de 9 de Agosto de 1949, o regime geral das doenças de notificação obrigatória. Pode assim depreender-se que as notificações de HIV/sida devem ser feitas, tal como as outras patologias, para a DGS. Nada é dito em relação ao novo formulário especial e anónimo para o HIV/sida nem à obrigatoriedade do seu uso. E aqui começa a confusão.

O membro da direcção da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública Mário Carreira alerta que "por distracção, o Ministério da Saúde anunciou que a notificação obrigatória seria feito ao INSA", mas a lei em que assenta a portaria é "o sistema tradicional de notificação obrigatória que é feito à DGS" com "o único formulário existente". "Não se refere o novo formulário", acentua. E o velho formulário não garante confidencialidade das pessoas, alerta Mário Carreira.

A "distracção" do Ministério da Saúde "é um acto irresponsável" que "mexe com privacidade das pessoas" e "descredibiliza o sistema", reitera. "A confusão está instalada."

O médico, que é assistente universitário de epidemiologia na Faculdade de Medicina de Lisboa, afirma que a portaria "lança a confusão e a desconfiança" e implica também "a perda de qualidade da informação já disponível".

O adjunto do encarregado de missão da Comissão Nacional de Luta Contra a Sida (CNLCS), Carlos Figueiredo, admite que a "falha" é "alheia à comissão". "Fomos contactados por vários médicos a levantar, com toda a justiça, essa questão. Têm novos documentos mas a portaria diz-lhes para agir como antigamente", reforça.

Sida exige circuitos próprios
Os novos formulários do HIV/sida foram distribuídos, em Novembro, aos hospitais e às administrações regionais de saúde, mas a portaria não obriga ao seu uso. "Os médicos podem levantar a questão: usam a folha nova ou a antiga?", refere o responsável da CNLCS.

Carlos Figueiredo admite que a portaria vai ter que ser revogada ou rectificada, esclarecendo-se que a notificação da sida é feita para o INSA e anexando-se ao diploma o novo formulário que é específico para o HIV/sida. "A especificidade da notificação dos casos de sida" em termos de confidencialidade e anonimato exige "circuitos [de informação] próprios".

O responsável da CNLCS não teme, contudo, que a confusão tenha conduzido a "quebras de confidencialidade", porque os médicos estão habituados a lidar com a sida como uma doença que é confidencial. "Estão absolutamente informados."

Fica assim inviabilizado o balanço do processo de notificação obrigatória que o encarregado de missão da CNLCS, Meliço Silvestre, tinha prometido para o final do ano passado. "Não se pode falar de balanço sem que as coisas estejam claras", esclarece Carlos Figueiredo.

O porta-voz do Ministério da Saúde, António Mocho, afirma que foram alertados para o problema pela CNLCS e já deram instruções para que a rectificação seja feita ainda este mês, de forma a que o novo modelo de formulário seja anexado e "não haja dúvidas".

O director-geral da Saúde, Pereira Miguel, afirma que a rectificação da portaria está a ser "apreciada pela divisão de epidemiologia". Este responsável afirma não ter conhecimento da chegada à DGS, por engano causado pela portaria, de qualquer notificação de HIV/sida nos modelos de notificação antigos.

Comments:
Já em Janeiro de 2002, numa das raras reuniões do então Conselho Consultivo da CNLcSIDA, deixámos escrito o alerta contra e sobre os perigos da notificação obrigatória – ver ponto dois do Anexo I.

Mais de dois anos depois vemos confirmados os nossos receios e lançada uma enorme confusão.

Lamenta-se, embora, naturalmente, não nos surpreenda, que o trabalho e os contributos das pessoas com VIH ou SIDA e suas organizações continue a não ser considerado como devia.
Com um abraço
Pedro Silvério Marques


Anexo I
Posição/parecer da Associação ABRAÇO apresentada na reunião de 17 de Setembro de 2002 do Conselho Consultivo da Comissão Nacional de Luta contra a SIDA

INTRODUÇÃO
Queremos em primeiro lugar manifestar que, sendo desconhecidos, formalmente, os objectivos, conteúdo, alcance e metodologia das medidas sobre que a CNLcSIDA pretende saber a nossa opinião, corremos o risco de alguns comentários serem redundantes ou despropositados.
Sugerimos assim que, em prol da eficácia e eficiência futura destas consultas, passem a ser atempadamente postos à disposição dos consultados os documentos sobre que se pretende saber a sua opinião.
1. FORNECIMENTO DE ANTIRETROVIRAIS PELAS FARMÁCIAS (não hospitalares)
A distribuição ... actuais.

2. NOTIFICAÇÃO OBRIGATÓRIA DE VIH/SIDA
Talvez não tenha havido muitas pessoas ou instituições que, como a ABRAÇO, tenham insistido tanto na necessidade de termos informação atempada, correcta e fidedigna sobre o impacto epidemiológico da infecção pelo VIH/SIDA em Portugal.
Desde sempre que temos combatido a insuficiência dos dados e as sub-notificações, bem como as interpretações e leituras, alarmistas ou pseudo tranquilizadoras que deles são feitos.
Com o actual sistema de notificação sabemos, hoje, mais ou menos metade do que se passou à cerca de cinco anos.
Não entendemos, no entanto, que tal problema se resolva por uma mera alteração da natureza da notificação. Nomeadamente quando tal alteração, sem mais, diminui a informação epidemiológica e os direitos das pessoas.
A estratégia constante no plano da CNLcSIDA, em relação aos cuidados primários e hospitalares (pg. 35) é a de “propor a alteração do regime de notificação obrigatória aplicável às doenças contagiosas ...”.
Sem o conhecimento de tal proposta de alteração, caso exista, a mera transformação da notificação da casos de VIH/SIDA em obrigatória é inaceitável.
Porque não respeita a confidencialidade dos dados pessoais e diminui a informação epidemiológica que hoje se tenta recolher.
 
Obrigado, Pedro. É verdade, o que é que aconteceu ao Conselho Consultivo da CNLCS? Deve estar a fazer uma IST.
 
Já agora, Pedro, aqui vai o resto da posição da Abraço de 2002, também ainda relevante aqui:
"...
Acresce que a simples alteração da natureza da notificação não acrescenta em nada a capacidade de resposta dos actuais notificadores (os médicos) nem do organismo que centraliza e trata a informação.
Para se obter uma significativa redução das sub-notificações e dos atrasos de notificação são necessários meios e sistemas que de forma transparente e no integral respeito dos direitos das pessoas, nomeadamente do direito à privacidade e à confidencialidade do seu estado de saúde, permitam ultrapassar as carências existentes.
Por outro lado torna-se necessário e urgente que o sistema de notificação seja complementado com a criação e aplicação de “indicadores sentinela” que nos permitam uma informação em tempo real do que está a acontecer agora.
Indicadores sentinela que não têm de ser inventados. Eles (alguns deles) constam dos relatórios europeus de vigilância epidemiológica, curiosamente, sem dados para Portugal. Dadores de sangue, grávidas, mancebos incorporados (enquanto houver incorporações) e outros, são contigentes em que se pensa imediatamente para efectuar despitagens anónimas regulares. Aos epidemiologistas de completar e definir os sistemas que nos possam permitir conhecer, finalmente e sem margem para leituras subjectivas, a situação real da epidemia em Portugal. "
 
Nuno, não podes esquecer que o actual encarregado de missão está a trabalhar na CNLCS em part-time. Entre Coimbra e Lisboa. Isto só mostra a importância dada pelos governantes ao problema da sida em Portugal.
 
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