quinta-feira, março 03, 2005
Asneira contínua ou continua a asneira
Pedro Silvério Marques
Boletim Abraço Março/Abril 2005
Quem tenha prestado alguma atenção aos telejornais do dia 28 de Fevereiro a propósito da divulgação dos cerca de 26 mil casos de infecções pelo VIH notificados até Dezembro de 2004, terá ouvido repetir, hora a hora, e em todos os quatro canais, sem excepção, o disparate publicado na "Capital" desse dia: “…os médicos, por razões burocráticas, só notificam os casos de infecção pelo VIH e de SIDA, em média, cinco anos após o diagnóstico”.
Sem governo, sem política, sem julgamentos, da Casa Pia ou outros, ao domingo, ainda sem imagens de vacas ou ovelhas mortas de fome ou de sede e antes da chegada do anticiclone da Islândia, a notícia ombreava com a traqueotomia do Papa, a vitória do Sporting e o empate entre o Porto e o Benfica.
Hoje, 2 de Março, a notícia chegou aos jornais de referência. O insuspeito “Público”, depois de chamar a atenção para o facto de, dos 2.594 casos notificados em 2004, apenas 1.056 corresponderem a diagnósticos efectuados nesse ano, tem esta pérola:
“Os restantes foram detectados anteriormente pelos médicos, mas só foram reportados ao centro no ano passado – um problema reconhecido de subnotificação,...”
Embora continue a não haver Governo, já há alguns escândalos políticos, o novo emprego do Vitorino, a ameaça de expulsão do Pacheco Pereira, já houve sessões dos tribunais, a gelo e a neve cobriram (parte) do país e o Papa já fala. O reconhecido problema não teve honras de telejornais.
Haja Deus, porque de asneiras estamos conversados! A tempo – dia 18 de Fevereiro – tinha já a Associação Abraço chamado a atenção para os números de 2004. Mas a excitação nacional era com as legislativas. O período de “reflexão” sobre o impacto da epidemia durou dez dias. A tempo também – de facto quase todos os anos por esta altura – o Boletim analisa os números de casos de infecção pelo VIH e de SIDA notificados. A Associação Abraço tem repetidamente alertado para o impacto real da epidemia, chamando a atenção para as diferenças entre casos diagnosticados, casos notificados e casos estimados e para os atrasos das notificações e a sub-notificação de casos.
Seria de pensar que, pelo menos, os meios de comunicação já não se baralhassem com os dois conceitos e não repetissem, acefalicamente, as asneiras uns dos outros.“Wishful thinking”.
É bom que os meios de comunicação em geral já não engulam os números passivamente como num passado ainda recente e chamem a atenção para os atrasos existentes. Mas, nesta matéria, são igualmente negativas as mensagens incorrectas que estão a passar.
Vamos lá a ver se nos entendemos. Atraso nas notificações relaciona o ano de diagnóstico com o ano em que a respectiva notificação chega ao centro de vigilância. Por outra forma como se distribui, no tempo a recepção das notificações referentes a diagnósticos efectuados num determinado ano. Quem tiver o gosto, ou se quiser entreter, a estudar as publicações do INSRJ com a informação dos casos de VIH e SIDA notificados, constatará alguns parâmetros que, quase sem alterações em mais de vinte anos, caracterizam os atrasos nas notificações em Portugal.
Sobretudo em relação aos casos de SIDA – durante muito tempo a informação em que se punha mais cuidado – mas também em relação aos casos totais de infecção, SIDA, CRS e VIH – desde que, no ano 2000, se passou a prestar uma maior atenção qualitativa a esta informação – os casos que notificados no próprio ano do diagnóstico variam entre 51% e 58% dos casos que diagnosticados nesse ano.
Se considerarmos os casos notificados no ano do diagnóstico e no ano imediatamente a seguir, aquelas percentagens são de 78 a 85%. Só quando acumulamos os casos notificados durante os cinco anos imediatos ao do diagnóstico é que os valores se situam entre 94 e 98%. Nos anos seguintes os valores continuam a crescer, de forma mais irregular, até atingir os totais conhecidos nesta data.
É portanto uma séria asneira, que pode mesmo induzir em graves erros e decisões de consequências difíceis de calcular escrever e dizer repetidamente que os médicos, …, só notificam os casos de infecção pelo VIH e de SIDA, em média, cinco anos após o diagnóstico.
Qualquer que seja o significado que se queira dar à palavra média, o que se tem de reconhecer é que, de facto (pouco) mais de metade das notificações são efectuadas no próprio ano da realização do diagnóstico e que, um ano depois, cerca de 80% dos diagnósticos estão notificados.
O que parece relevante é que, mantendo-se com tal rigidez aqueles parâmetros caracterizadores do atraso das notificações em Portugal, face ao número de notificações referente aos novos casos diagnosticados em cada ano, podemos dizer com alguma segurança que o número real de diagnósticos terá sido o dobro.
Ou seja que em Portugal terão sido efectuados em 2004 cerca de 2.100 novos diagnósticos, 6 por dia!
As ditas “razões burocráticas” invocadas parecem uma saída “fácil” para quem não pretende de facto aprofundar e caracterizar a situação. Mas este artigo já vai muito longo. Fica para uma próxima oportunidade.
Sub-notificação, por seu lado, corresponde à relação ou à diferença entre o número de casos de infecção que realmente existem e os que são, ou virão a ser em qualquer altura, notificados. A sub-notificação, por natureza, não pode ser conhecida através das notificações, seria uma contradição intrínseca. Só é possível estimá-la indirectamente, através de estudos ou indicadores específicos. Entre nós, por exemplo, comparando os valores da mortalidade por SIDA do INE e do INSRJ, vemos que mais de metade das mortes associadas à infecção pelo VIH e à SIDA, nas séries do INE, não são consideradas nas séries do INSRJ – porque correspondem a casos que nunca tinham sido notificados.
É por estas razões que costumamos dizer que, em Portugal, sabemos hoje cerca de metade do que se passou há cinco anos atrás. Ou, de outra forma, que se deve multiplicar por 4 a primeira informação do número de diagnósticos de um determinado ano para se ter uma ideia do número real de infecções que deve ter havido.
O que dará, para 2004 e a manterem-se as tendências daqueles indicadores, mais de 4.200 novas infecções, 12 por dia!
Uiusque quando…
Boletim Abraço Março/Abril 2005
Quem tenha prestado alguma atenção aos telejornais do dia 28 de Fevereiro a propósito da divulgação dos cerca de 26 mil casos de infecções pelo VIH notificados até Dezembro de 2004, terá ouvido repetir, hora a hora, e em todos os quatro canais, sem excepção, o disparate publicado na "Capital" desse dia: “…os médicos, por razões burocráticas, só notificam os casos de infecção pelo VIH e de SIDA, em média, cinco anos após o diagnóstico”.
Sem governo, sem política, sem julgamentos, da Casa Pia ou outros, ao domingo, ainda sem imagens de vacas ou ovelhas mortas de fome ou de sede e antes da chegada do anticiclone da Islândia, a notícia ombreava com a traqueotomia do Papa, a vitória do Sporting e o empate entre o Porto e o Benfica.
Hoje, 2 de Março, a notícia chegou aos jornais de referência. O insuspeito “Público”, depois de chamar a atenção para o facto de, dos 2.594 casos notificados em 2004, apenas 1.056 corresponderem a diagnósticos efectuados nesse ano, tem esta pérola:
“Os restantes foram detectados anteriormente pelos médicos, mas só foram reportados ao centro no ano passado – um problema reconhecido de subnotificação,...”
Embora continue a não haver Governo, já há alguns escândalos políticos, o novo emprego do Vitorino, a ameaça de expulsão do Pacheco Pereira, já houve sessões dos tribunais, a gelo e a neve cobriram (parte) do país e o Papa já fala. O reconhecido problema não teve honras de telejornais.
Haja Deus, porque de asneiras estamos conversados! A tempo – dia 18 de Fevereiro – tinha já a Associação Abraço chamado a atenção para os números de 2004. Mas a excitação nacional era com as legislativas. O período de “reflexão” sobre o impacto da epidemia durou dez dias. A tempo também – de facto quase todos os anos por esta altura – o Boletim analisa os números de casos de infecção pelo VIH e de SIDA notificados. A Associação Abraço tem repetidamente alertado para o impacto real da epidemia, chamando a atenção para as diferenças entre casos diagnosticados, casos notificados e casos estimados e para os atrasos das notificações e a sub-notificação de casos.
Seria de pensar que, pelo menos, os meios de comunicação já não se baralhassem com os dois conceitos e não repetissem, acefalicamente, as asneiras uns dos outros.“Wishful thinking”.
É bom que os meios de comunicação em geral já não engulam os números passivamente como num passado ainda recente e chamem a atenção para os atrasos existentes. Mas, nesta matéria, são igualmente negativas as mensagens incorrectas que estão a passar.
Vamos lá a ver se nos entendemos. Atraso nas notificações relaciona o ano de diagnóstico com o ano em que a respectiva notificação chega ao centro de vigilância. Por outra forma como se distribui, no tempo a recepção das notificações referentes a diagnósticos efectuados num determinado ano. Quem tiver o gosto, ou se quiser entreter, a estudar as publicações do INSRJ com a informação dos casos de VIH e SIDA notificados, constatará alguns parâmetros que, quase sem alterações em mais de vinte anos, caracterizam os atrasos nas notificações em Portugal.
Sobretudo em relação aos casos de SIDA – durante muito tempo a informação em que se punha mais cuidado – mas também em relação aos casos totais de infecção, SIDA, CRS e VIH – desde que, no ano 2000, se passou a prestar uma maior atenção qualitativa a esta informação – os casos que notificados no próprio ano do diagnóstico variam entre 51% e 58% dos casos que diagnosticados nesse ano.
Se considerarmos os casos notificados no ano do diagnóstico e no ano imediatamente a seguir, aquelas percentagens são de 78 a 85%. Só quando acumulamos os casos notificados durante os cinco anos imediatos ao do diagnóstico é que os valores se situam entre 94 e 98%. Nos anos seguintes os valores continuam a crescer, de forma mais irregular, até atingir os totais conhecidos nesta data.
É portanto uma séria asneira, que pode mesmo induzir em graves erros e decisões de consequências difíceis de calcular escrever e dizer repetidamente que os médicos, …, só notificam os casos de infecção pelo VIH e de SIDA, em média, cinco anos após o diagnóstico.
Qualquer que seja o significado que se queira dar à palavra média, o que se tem de reconhecer é que, de facto (pouco) mais de metade das notificações são efectuadas no próprio ano da realização do diagnóstico e que, um ano depois, cerca de 80% dos diagnósticos estão notificados.
O que parece relevante é que, mantendo-se com tal rigidez aqueles parâmetros caracterizadores do atraso das notificações em Portugal, face ao número de notificações referente aos novos casos diagnosticados em cada ano, podemos dizer com alguma segurança que o número real de diagnósticos terá sido o dobro.
Ou seja que em Portugal terão sido efectuados em 2004 cerca de 2.100 novos diagnósticos, 6 por dia!
As ditas “razões burocráticas” invocadas parecem uma saída “fácil” para quem não pretende de facto aprofundar e caracterizar a situação. Mas este artigo já vai muito longo. Fica para uma próxima oportunidade.
Sub-notificação, por seu lado, corresponde à relação ou à diferença entre o número de casos de infecção que realmente existem e os que são, ou virão a ser em qualquer altura, notificados. A sub-notificação, por natureza, não pode ser conhecida através das notificações, seria uma contradição intrínseca. Só é possível estimá-la indirectamente, através de estudos ou indicadores específicos. Entre nós, por exemplo, comparando os valores da mortalidade por SIDA do INE e do INSRJ, vemos que mais de metade das mortes associadas à infecção pelo VIH e à SIDA, nas séries do INE, não são consideradas nas séries do INSRJ – porque correspondem a casos que nunca tinham sido notificados.
É por estas razões que costumamos dizer que, em Portugal, sabemos hoje cerca de metade do que se passou há cinco anos atrás. Ou, de outra forma, que se deve multiplicar por 4 a primeira informação do número de diagnósticos de um determinado ano para se ter uma ideia do número real de infecções que deve ter havido.
O que dará, para 2004 e a manterem-se as tendências daqueles indicadores, mais de 4.200 novas infecções, 12 por dia!
Uiusque quando…