sexta-feira, fevereiro 18, 2005
Notificação obrigatória da sida "é 'marketing' e propaganda política"
Acertou em cheio!
Público 18.02.05
Tornar o HIV/sida uma doença de notificação obrigatória não passou "de 'marketing' e propaganda política", defende Mário Carreira, membro da direcção da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública. A medida "é avulsa, porque o mais importante é rever todo o sistema de notificação obrigatória das doenças transmissíveis". Critica, portanto, que o ministro da Saúde tenha no seu gabinete "um anteprojecto [do novo sistema] sem ter tido preocupação em aprová-lo".
A decisão de tornar a sida em doença de notificação obrigatória "reflecte incompetência e ingenuidade" e tenta passar a ideia de que, se se resolvesse a falta de informação, o problema da sida ficaria resolvido, defende o epidemiologista, que é também assistente universitário na Faculdade de Medicina de Lisboa.
A portaria que integra o HIV/sida na lista de doenças de declaração obrigatória foi publicada no final de Janeiro, mas o Ministério da Saúde já anunciou que vai rectificá-la ainda este mês. Levantaram-se dúvidas junto dos clínicos sobre a forma de fazer a notificação, podendo estar em causa a quebra de anonimato dos doentes (ver PÚBLICO 5/02).
"O acto de inclusão do HIV/sida na lista de doenças de notificação obrigatória é gratuito e inútil nesta fase, porque todo o modelo de vigilância epidemiológica tem 100 anos", "é um sistema primitivo - como já foi reconhecido - e está em reformulação", reitera.
Mário Carreira refere que o projecto de diploma do novo sistema de vigilância de doenças da Direcção-Geral da Saúde (DGS) está há muitos meses no gabinete do ministro, "que não teve preocupação em modificar o sistema". Antes apostou no que qualifica de medidas "avulsas", em vez de reformular de alto a baixo as bases da actual vigilância epidemiológica, que assenta apenas na "notificação passiva", porque depende do envio livre pelo médico, "o que explica, em grande parte, a subnotificação", comenta. Uma "vigilância moderna é activa, procura a informação junto dos médicos e dos hospitais, mas deve contar também com fontes laboratoriais, o que só esporadicamente é feito", acrescenta.
Estratégias de combate contra a sida fracassaram
Mário Carreira não poupa também críticas à forma como tem sido feito o combate à sida. Refere-se ao "falhanço das estratégias em Portugal", em que os níveis de incidência, apesar de terem descido, ainda continuam a ser dos mais elevados da União Europeia. "Não há preocupações em procurar razões do insucesso de uma luta de 20 anos", alerta.
O médico de saúde pública diz que o último inquérito sobre as atitudes dos portugueses face à sida mostra ignorância - há ainda quem acredite que a doença se transmite com apertos de mão -, mas ninguém se perguntou por que é que as pessoas têm estas ideias, critica.
Por outro lado, questiona também o modelo institucional adoptado. "Este modelo não funcionou e tem que ser posto em causa." "A Comissão Nacional de Luta Contra a Sida devia ser extinta." Esta surge, na sua opinião, como um corpo externo ao sistema de saúde com quem tem que trabalhar, o que implica "falta de autoridade" e obriga a um funcionamento burocratizado. Por exemplo, para obter dados junto dos hospitais, a comissão tem que fazer protocolos. "É uma ilha que se articula artificialmente com os serviços de saúde." "Muitas organizações não governamentais têm feito mais contra a sida do que a comissão", aponta.
Ao invés, defende que o combate à sida - e mesmo a sua notificação - deveria ser devolvido à Direcção-Geral da Saúde, que está integrada no sistema e já lida com todas as doenças transmissíveis. Ao mesmo tempo, a DGS está "depauperada em termos de recursos humanos", enquanto a comissão "é uma estrutura com meios e sem resultados", comenta o médico, que é também quadro da DGS.
O próprio perfil das pessoas que têm liderado a comissão "não é o mais adequado. São infecciologistas, pessoas ligadas a laboratório", quando a sida "é um problema de promoção e educação para a saúde. Não se resolve nos centros de saúde e nos hospitais, isso é o tratamento".
Na opinião de Mário Carreira, deve insistir-se, sim, na promoção da saúde na comunidade em locais como as autarquias, as empresas e as escolas. Tem-se disponibilizado o preservativo, "mas a quantos alunos foi explicado como se usa?". Nas metas do Plano Nacional de Luta Contra a Sida, lê-se: "aumentar em 30 por cento o número de indivíduos que conhecem os métodos correctos de prevenção da infecção pelo HIV". "Falar de sida é falar de coisas concretas. O que é que interessa que os 'conheçam' e não os usem?"
Público 18.02.05
Tornar o HIV/sida uma doença de notificação obrigatória não passou "de 'marketing' e propaganda política", defende Mário Carreira, membro da direcção da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública. A medida "é avulsa, porque o mais importante é rever todo o sistema de notificação obrigatória das doenças transmissíveis". Critica, portanto, que o ministro da Saúde tenha no seu gabinete "um anteprojecto [do novo sistema] sem ter tido preocupação em aprová-lo".
A decisão de tornar a sida em doença de notificação obrigatória "reflecte incompetência e ingenuidade" e tenta passar a ideia de que, se se resolvesse a falta de informação, o problema da sida ficaria resolvido, defende o epidemiologista, que é também assistente universitário na Faculdade de Medicina de Lisboa.
A portaria que integra o HIV/sida na lista de doenças de declaração obrigatória foi publicada no final de Janeiro, mas o Ministério da Saúde já anunciou que vai rectificá-la ainda este mês. Levantaram-se dúvidas junto dos clínicos sobre a forma de fazer a notificação, podendo estar em causa a quebra de anonimato dos doentes (ver PÚBLICO 5/02).
"O acto de inclusão do HIV/sida na lista de doenças de notificação obrigatória é gratuito e inútil nesta fase, porque todo o modelo de vigilância epidemiológica tem 100 anos", "é um sistema primitivo - como já foi reconhecido - e está em reformulação", reitera.
Mário Carreira refere que o projecto de diploma do novo sistema de vigilância de doenças da Direcção-Geral da Saúde (DGS) está há muitos meses no gabinete do ministro, "que não teve preocupação em modificar o sistema". Antes apostou no que qualifica de medidas "avulsas", em vez de reformular de alto a baixo as bases da actual vigilância epidemiológica, que assenta apenas na "notificação passiva", porque depende do envio livre pelo médico, "o que explica, em grande parte, a subnotificação", comenta. Uma "vigilância moderna é activa, procura a informação junto dos médicos e dos hospitais, mas deve contar também com fontes laboratoriais, o que só esporadicamente é feito", acrescenta.
Estratégias de combate contra a sida fracassaram
Mário Carreira não poupa também críticas à forma como tem sido feito o combate à sida. Refere-se ao "falhanço das estratégias em Portugal", em que os níveis de incidência, apesar de terem descido, ainda continuam a ser dos mais elevados da União Europeia. "Não há preocupações em procurar razões do insucesso de uma luta de 20 anos", alerta.
O médico de saúde pública diz que o último inquérito sobre as atitudes dos portugueses face à sida mostra ignorância - há ainda quem acredite que a doença se transmite com apertos de mão -, mas ninguém se perguntou por que é que as pessoas têm estas ideias, critica.
Por outro lado, questiona também o modelo institucional adoptado. "Este modelo não funcionou e tem que ser posto em causa." "A Comissão Nacional de Luta Contra a Sida devia ser extinta." Esta surge, na sua opinião, como um corpo externo ao sistema de saúde com quem tem que trabalhar, o que implica "falta de autoridade" e obriga a um funcionamento burocratizado. Por exemplo, para obter dados junto dos hospitais, a comissão tem que fazer protocolos. "É uma ilha que se articula artificialmente com os serviços de saúde." "Muitas organizações não governamentais têm feito mais contra a sida do que a comissão", aponta.
Ao invés, defende que o combate à sida - e mesmo a sua notificação - deveria ser devolvido à Direcção-Geral da Saúde, que está integrada no sistema e já lida com todas as doenças transmissíveis. Ao mesmo tempo, a DGS está "depauperada em termos de recursos humanos", enquanto a comissão "é uma estrutura com meios e sem resultados", comenta o médico, que é também quadro da DGS.
O próprio perfil das pessoas que têm liderado a comissão "não é o mais adequado. São infecciologistas, pessoas ligadas a laboratório", quando a sida "é um problema de promoção e educação para a saúde. Não se resolve nos centros de saúde e nos hospitais, isso é o tratamento".
Na opinião de Mário Carreira, deve insistir-se, sim, na promoção da saúde na comunidade em locais como as autarquias, as empresas e as escolas. Tem-se disponibilizado o preservativo, "mas a quantos alunos foi explicado como se usa?". Nas metas do Plano Nacional de Luta Contra a Sida, lê-se: "aumentar em 30 por cento o número de indivíduos que conhecem os métodos correctos de prevenção da infecção pelo HIV". "Falar de sida é falar de coisas concretas. O que é que interessa que os 'conheçam' e não os usem?"