quinta-feira, novembro 25, 2004

Acabou-se o tempo

Passaram quatro anos desde que a Conferência Internacional sobre SIDA teve lugar pela primeira vez num país em vias de desenvolvimento - na África do Sul, em Durban - e que os os activistas lançaram o apelo para o acesso universal aos tratamentos. Na altura, a idéia de tratar milhões de pessoas seropositivas, no mundo inteiro, foi considerada uma utopia. Mesmo um ano mais tarde, em 2001, representantes de governo americano continuaram insistir que as infraestruturas e os sistemas de saúde na África eram demasiado primitivos para poderem suportar a distribuição de tratamentos de VIH/SIDA e, pior ainda, que os africanos não conseguiriam fazer terapêuticas anti-retrovirais com sucesso porque não tinham a noção do tempo. O custo dos medicamentos de marca era proibitivo -- até 15.000 dólares por ano. A política oficial das nações ricas era então focar na prevenção e deixar morrer os milhões já infectados.

Mas no mês de Julho passado, em Banguecoque, os ventos políticos tinham mudado de tal maneira que o tema oficial da conferência era "Access for All", “Acesso para Todos”. Nos anos anteriores, estudos em Uganda e na África do Sul provaram que os pobres africanos seropositivos eram tão aderentes nas tomas dos seus medicamentos como os seus congéneros da classe média em São Francisco. O Banco Mundial, Kofi Annan nas Nações Unidas e o presidente americano, George W. Bush, lançaram todos importantes iniciativas na área da SIDA, com orçamentos de milhares de milhões de dólares, cada uma focalizada nos tratamentos. A Declaração de Doha, em 2001, abriu a porta para a produção genérica de medicamentos salva-vidas, e, desde então, o custo para uma combinação terapêutica genérica caiu até tão pouco como 140 de dólares por ano. A Organização Mundial da Saúde (OMS) também fixou um objectivo ambicioso: tratar 3 milhões de pessoas que, urgentemente, precisam de comecar uma terapêutica anti-retroviral (das 6 milhões actualmente nestas condições) até ao fim de 2005, uma iniciativa chamada “3 por 5”. Quando os 19.000 investigadores, líderes do governo, representantes das instituições e activistas reuniram em Banguecoque no mês de Julho, a pergunta já não era se era possível tratar, mas como fazê-lo.



Se pairasse uma nuvem escura em cima da conferência, era porque o progresso real tinha sido tão diminuto. Milhões de pessoas morreram da SIDA no mundo inteiro desde a conferência de Durban, e, faltando somente dezoito meses para atingir o objectivo da OMS "3 por 5", umas meras 440.000 pessoas no mundo em desenvolvimento tiveram acesso aos anti-retrovirais. "Medindo em termos de vidas humanas – a única medida que conta realmente," disse Dr. Jim Kim, director para a área da SIDA da OMS, durante uma sessão plenária matinal, "nós falhámos e falhámos miseravelmente." Implorou a assistência para não desistir do plano “3 por 5”, mas para identificar os obstáculos no caminho deste objectivo, e para superá-los.

Em Banguecoque, estes obstáculos eram o assunto de discussões frustradas e acesas -- nas salas da conferência, nos corredores e nas ruas: A terrível fuga de cérebros (brain drain) de médicos e de enfermeiras, recrutados para empregos mais bem-pagos no norte. A negação persistente de alguns líderes políticos, como o espectáculo deprimente de Sonia Gandhi, enfrentando uma explosão da SIDA na Índia e insistindo, durante o último dia da conferência, que o seu governo teve o problema controlado – enquanto actualmente trata menos de mil dos seus cinco milhões de cidadãos seropositivos. A deteriorização das infraestruturas dos sistemas de saúde causada pelos programas de austeridade do Fundo Monetário Internacional (que limitam os orçamentos nacionais para programas sociais nos países em vias de desenvolvimento) e o prioritização das armas sobre a manteiga (alguns estados preferem gastar a ajuda internacional em armas em vez de a aplicar em programas de desenvolvimento). E sobretudo, os caprichos das instituições doadores, cada uma com os seus próprios projectos de estimação e com a sua própria coordenação e exigências de relatórios que complicam ainda mais os esforços para disponibilizar tratamentos aos necessitados. Neste campo, enquanto Kofi Annan e o seu Fundo Global contra a SIDA, a Tuberculose e a Malária receberam muitos elogios em Banguecoque, por causa da sua política de financiamento e de administração – o Fundo financia todas as propostas que os seus peritos técnicos aprovam e deixa a coordenação e implementação para o nível nacional, o Plano de Emergência contra a SIDA (PEPfAR) do presidente Bush, com as suas limitações na prevenção, baseadas em critérios puramente moralistas, e os seus regulamentos que favorecem a compra de medicamentos de marca caros, foi um alvo constante de critícas ferozes. Mais uma vez, o unilateralismo teimoso dos Estados Unidos da América deixou-os sem aliados no palco do mundo.



Durante uma sessão plenária, a epidemiologista Karen Stanecki informou que a epidemia galopante na Ásia era causada, em grande parte, por injecções com seringas sujas e pelo sexo comercial sem preservativos – contudo, o programa do presidente Bush recusa financiar projectos de troca de seringas ou de prevenção entre trabalhadores de sexo. Joia Mukherjee, a directora médica de um programa de tratamentos bem sucedido no Haiti, disse que quase rejeitou os dólares do plano americano porque podiam somente ser utilizados para comprar medicamentos de marca, o que quintuplicaria as suas despesas. O Comissário da Saúde mozambicano, o Director da Comissão Nacional da SIDA da Malawi e inúmeros outros representantes das nações “recipientes” queixaram-se que as limitações impostas por Bush os forçavam a elaborar pedidos de financiamento que não se equicionavam às necessidades nacionais reais ou que não podiam incorporar abordagens cientificamente provadas. E todos, de representantes do Banco Mundial a mulheres indianas seropositivas, denunciaram a política do presidente Bush, chamada "ABC" (Abstinence, Being faithful and Condoms). Esta política, que emfatiza a abstinência e o ser fiel em vez do uso de preservativos, foi tida como brutalmente irrelevante para as milhões de mulheres fiéis e infectadas pelos seus maridos. Durante a conferência de Banguecoque, o General Accounting Office dos E.U.A., a agência controladora equivalente ao Tribunal de Contas, emitiu um relatório sobre o programa PEPfAR do presidente Bush e alertou para estas preocupações. Nas entrevistas do relatório, vinte e cinco dos vinte e oito dos oficiais americanos, responsáveis para a implementação do programa, identificaram as limitações na compra de medicamentos genéricos como os maiores obstáculos para o sucesso do programa.



Enquanto Bush se vangloria do seu compromisso à luta global contra a SIDA, a delegação oficial que mandou a Banguecoque era bastante anémica; O Secretário da Saúde, Tommy Thompson, que, durante a última conferência do SIDA em Barcelona, foi corrido do palco descobriu desta vez um conflito de agenda. E o comportamento da delegação oficial americana só servia para aumentar a sua isolação. No dia da abertura, quando os activistas de tratamento de países tão distantes como a África do Sul, a Kenya, a Tailândia e Portugal fizeram uma manifestação para impôr alguma urgência na retórica do "acesso para todos", Dr. Jim Kim da OMS, Dr. Peter Piot da ONUSIDA e o director do Fundo Global, Dr. Richard Feachem, juntaram-se todos aos manifestantes para aceitarem as petições escritas. Mas o responsável global dos E.U.A., Randall Tobias, recusou-se enfrentar os seus críticos e cancelou três aparências nos dias seguintes, deixando um assistente defender a recusa do presidente Bush para financiar medicamentos genéricos por razões de alegada "falta de segurança" destes medicamentos, contudo aprovados pela OMS. Randall Tobias finalmente concordou falar sozinho, numa palestra-almoço especial, e quase deixou o palco após mais um encontro com manifestantes. Mais tarde, teve ainda o tempo para falar aos jornalistas para abaixar o Fundo Global, dizendo que o Fundo era dysfuncional e que a contribuição americana de 200 milhões de dólares era suficiente. O Director do Fundo Global, Richard Feachem, garanta que a contribuição justa* dos E.U.A. para 2005 será de 1,2 mil milhões de dólares.

No último dia da conferência, durante um encontro com a imprensa, Zackie Achmat, o dirigente seropositivo du grupo de activistas sul-africano, Treatment Action Campaign, que já arriscou a prisão quando tentou importar medicamentos genéricos no seu país, contra a vontade do seu próprio governo intransigente, respondeu a uma pergunta acerca do "ódio de estimação aos E.A.U." reinante durante a conferência de Banguecoque. "Ódio de estimação aos E.U.A.?" respondeu. "Isto não é um ódio de estimação mas sim a compreensão que a maior ameaça à saúde pública global é o George W. Bush. Distribuir tratamentos anti-retrovirais aos todos que necessitam é o maior desafio que o mundo alguma vez empreendeu. E não é possível com uma super-potência que impõe a sua vontade e a sua agenda ideológica."

Quase 38 milhões de pessoas no mundo vivem actualmente com o vírus do VIH, e mais de 6 milhões delas, já sintomáticas, contam o tempo. Se um país-doador tão significativo como os E.U.A. continuam recusar o financiamento para medicamentos genéricos, “3 por 5” falhará, e a saúde destas 6 milhões de pessoas também falhará em breve. Até agora, a guerra solitária dos Estados Unidos no Iraque custou ao menos 11.000 vidas. Mas a sua estratégia solitária na SIDA promete custar muitas mais.

* A contribuição justa ou equitativa de Portugal ao Fundo Global foi calculada pelas instituições internacionais em, pelo menos, 16 milhões de dólares por ano. Até data, o governo português prometeu 1 milhão de dólares para os anos de 2003 e 2004. Em Banguecoque, interpelado acerca desta contribuição portuguesa modesta, o Encarregado de Missão da Comissão Nacional contra a SIDA, Prof. Dr. Meliço-Silvestre, reconheceu que “Portugal pode e deve fazer muito melhor”...

Artigo escrito por Esther Kaplan e publicado em The Nation (E.U.A.), traduzido pelo GAT.

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