quinta-feira, novembro 25, 2004

A ganância das farmacêuticas, uma nova classe de rendeiros



Na XV Conferência Internacional sobre SIDA, em Banguecoque, na sessão de trabalho sobre patentes, desenvolvimento de medicamentos e VIH/SIDA, no dia 14 de Julho passado, Walden Bello* proferiu o seguinte discurso:

“Big Pharma, massive profits”

As estimativas de aceleração da taxa da infecção do VIH põem em evidência a escala do problema da saúde pública com que o mundo se confronta. Claramente, necessitamos dum esforço equivalente ao Manhattan Project (projecto americano para o desenvolvimento da bomba atómica, levado a cabo durante a segunda Guerra Mundial) para tratar do VIH/SIDA. Um projecto que, ao contrário do Manhattan Project original, seja destinado a salvar vidas em vez de provocar mortes.

Todos os actores envolvidos – governos, indústria, sociedade civil, comunidade médica – se devem reunir num esforço maciço, único e coordenado.

Há, no entanto, cada vez mais dúvidas acerca da participação de um grupo-chave: a indústria farmacêutica ou, como é chamada no mundo dos negócios, a “Big Pharma”. Cada vez mais se ouve a pergunta: será que a indústria farmacêutica, a Big Pharma, faz parte do problema ou parte da solução?

Obstrucionismo empresarial
Enquanto as Nações Unidas e as outras instituições internacionais têm trabalhado com os governos em África e na América Latina para tentar virar a maré da epidemia, o que é que a Big Pharma tem feito?

Ora bem, entre 1999 e 2001, tentou que o governo dos Estados Unidos usasse formas de pressão, como a interrupção de ajuda financeira, para pressionar a África do Sul a anular a sua nova lei de licenciamento obrigatório (**), que permitiria a produção de medicamentos anti-retrovirais baratos. Ameaçou também levar o governo sul-africano a tribunal por desrespeito da legislação sobre patentes. Foi até ao ponto de usar o então vice-presidente americano, Al Gore, para exercer pressão sobre o presidente sul-africano, Thabo Mbeki, sobre esta questão.

Em Novembro de 2001, a quarta reunião ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC) adoptou a declaração de Doha, estipulando que os problemas de saúde pública têm prioridade sobre os direitos de propriedade intelectual. A Big Pharma passou os dois anos seguintes a tentar esvaziar o acordo, exercendo pressão sobre vários países para que fossem adicionadas onerosas condições às vendas de medicamentos essenciais que os países em vias de desenvolvimento, com capacidade de produção, cobrassem àqueles que não tivessem esta capacidade.

No que diz respeito ao VIH/SIDA, a Big Pharma está menos preocupada com a salvação de vidas e muito mais preocupada com a protecção das suas patentes e com a defesa da sua própria interpretação do acordo TRIPS (Trade-related Intellectual Property Rights, acordo sobre direitos comerciais de propriedade intelectual, promovido pela OMC e subscrito, obrigatoriamente, pelos seus membros), interpretação que restringe a possibilidade do licenciamento obrigatório, impede as exportações de medicamentos produzidos em regime de licenciamento obrigatório e proíbe importações paralelas (***).

O que motiva esta atitude de frio calculismo? Ora bem, a lógica da Big Pharma é a seguinte: Sem a protecção muito vasta para as suas patentes, sem os super-lucros que obtem através desta protecção, não haveria nenhuma investigação nem desenvolvimento de medicamentos (em inglês, Research and Development ou R&D), nenhuma inovação, e, assim, morreriam cada vez mais pessoas de SIDA e de outras doenças mortais.

Quando a Organização Mundial de Saúde (OMS) nos ensina que a maioria dos medicamentos patenteados se vendem ao consumidor final a um preço entre 20 a 100 vezes o seu custo de produção, não fiquemos zangados: Relembremo-nos que não se trata de um preço de mercado mas sim de um preço de monopólio para suportar a continuação das actividades de investigação e desenvolvimento.

Mitos e realidades
A posição da Big Pharma acerca da necessidade e da eficácia da R&D empresarial ou privada baseia-se num conjunto de mitos e de distorções claras. Olhemos de perto para alguns destes.

A Big Pharma tenta projectar o facto de que o desenvolvimento de medicamentos só pode acontecer graças aos seus esforços isolados, e, por isso, nós devemos aceitar a fixação de preços de monopólio dos medicamentos. Típica desta posição era a reivindicação da Burroughs Wellcome (agora parte da Glaxo Wellcome) de que foram eles que descobriram a azidothymidina, ou AZT. Na realidade, foi uma equipa do Instituto Nacional do Cancro americano – financiado com fundos públicos – que, trabalhando em conjunto com os investigadores da Universidade Duke, descobriram esta molécula.

Actualmente, a indústria farmacêutica vangloria-se que está a desenvolver 73 medicamentos contra a SIDA. Olhemos de mais perto e veremos que a maioria dos laboratórios que fazem esta pesquisa estão a receber apoios governamentais substanciais, através da colaboração, financiada com dinheiro público, de investigadores dos Institutos Nacionais da Saúde dos E.U.A. Ou seja, a Big Pharma afirma que está a fazer a R&D, mas, de facto, está a encaminhar o dinheiro dos impostos para muita da sua pesquisa sobre medicamentos essenciais e salva-vidas.

A indústria farmacêutica diz que a estrita protecção das suas patentes é necessária porque custa 500 milhões de dólares para introduzir um único medicamento no mercado. Merrill Goozner, um proeminente perito em matéria da indústria farmacêutica e professor de jornalismo na Universidade de Nova Iorque, salienta que este número é falso por várias razões – desde logo porque a maioria destes medicamentos, chamados “novos”, não são inovações. De facto, mais de 40% da investigação e desenvolvimento na indústria farmacêutica é destinado a produzir variações menores de medicamentos já existentes e não a descobrir novos.

Além disso, grande parte dos alegados custos do desenvolvimento de medicamentos está relacionada com despesas de marketing, destinadas a convencer as pessoas a comprar versões diferentes do mesmo medicamento. Na indústria farmacêutica, o sector que cresce mais rapidamente é o sector de marketing, não o da R&D.

Actualmente, trabalham 90.000 delegados médicos na Big Pharma, cujo papel é o de convencer os médicos a prescreverem estas novas versões aos pacientes – a Pfizer, sozinha, emprega 11.000 destas tropas. De acordo com o jornal canadiano, o Toronto Star, cerca de 12 mil milhões (12.000.000.000!) de dólares dos custos das empresas farmacêuticas são hoje em dia destinados a manter e expandir os salários e outros benefícios desta categorial profissional não essencial.

Um terceiro custo, calculado à volta de 500 milhões de dólares, são os pacotes salariais astronómicos dos executivos de topo das várias empresas farmacêuticas – um ponto que retomaremos mais à frente.

A Big Pharma tem um Retorno do Investimento (ROI) superior a 20%, sendo a indústria mais rentável dos Estados Unidos. Contudo, mesmo com os seus lucros a crescer, a produtividade da indústria caiu. Em 1996, a agência reguladora americana, a FDA (Food and Drug Administration), aprovou 53 novos medicamentos. No ano passado, aprovou apenas 17.

Ainda segundo o jornal Toronto Star, ''a Big Pharma inventa cada vez menos medicamentos. Compra as licenças de pequenos laboratórios do mundo inteiro, ou compra os medicamentos directamente, adquirindo os laboratórios que detêm os direitos, reflectindo os elevados custos destes take-overs (as aquisições das empresas) nos consumidores. Os consumidores de medicamentos pelo mundo fora estão a suportar o custo das recentes aquisições da Warner Lambert e da Pharmacia Corporation pela Pfizer, através de preços mais elevados dos medicamentos.

A indústria farmacêutica está a orientar-se, cada vez mais, não para a inovação, mas para a produção de variações do mesmo medicamento ou tratamento. É por isso que precisa de proteger firmemente as patentes existentes, sejam elas de medicamentos contra o VIH/SIDA, para tratar doenças tropicais ou contra o cancro. Ou seja, está a tornar-se numa classe de rendeiros, uma classe cujas receitas provêm das rendas e alugueres das suas propriedades (intelectuais, neste caso) e de aplicações financeiras e outros investimentos.



Porque é que a R&D privada não é a resposta?
Sabemos que, mesmo com o licenciamento obrigatório, os custos do tratamento do VIH/SIDA continuam demasiado elevados para muitos doentes e governos. Baixar o custo do tratamento para 200 dólares por ano não chega, já que com este preço muitos milhões de pessoas pobres continuam fora do mercado.

Necessitamos desesperadamente que a investigação descubra medicamentos ao alcance de todos. Esperar que isto venha de uma indústria cada vez mais esclerosada e marcada por uma mentalidade de rendeiros é provavelmente irrealista.

Mas há uma pergunta mais básica: será que a indústria está mesmo interessada no desenvolvimento de medicamentos de que há uma grande necessidade mas de que não se pode obter grandes lucros? A resposta é não.

Apesar do facto de as doenças tropicais serem as principais assassinas no mundo, somente 13 dos 1.233 medicamentos novos que chegaram ao mercado entre 1975 e 1997, foram aprovados especificamente para doenças tropicais. Simplesmente, não havia mercado para justificar a investigação e desenvolvimento nesta área.

Eu arriscar-me-ia a sugerir que, para a Big Pharma, o mercado, constituído pelos milhões de pessoas que sofrem do VIH/SIDA em África, na Ásia do sul e do sudeste, simplesmente empalidece em comparação ao mercado das doenças dos ricos no norte. Os lucros e não as necessidades humanas determinam a R&D empresarial.

É importante lembrarmo-nos que não são unicamente os grupos de activistas do VIH/SIDA que estão a braços com as políticas de monopólio da Big Pharma. De facto, há uma resistência forte e articulada, tanto no norte como no sul da planeta.

Por exemplo, nos Estados Unidos, os pedidos de grupos de cidadãos seniores para baixar os preços tornaram-se de tal maneira fortes que, no Congresso americano, os republicanos, estão a propor legislação para legalizar a importação de medicamentos do Canadá, onde são muito mais baratos do que os vendidos no mercado americano pela Big Pharma. Como seria de esperar, a indústria farmacêutica opôs-se a esta legislação, lançando o fantasma de estes medicamentos importados não serem “seguros” – um argumento conhecido que já utilizou contra os genéricos baratos do VIH/SIDA.

Porque precisamos de um novo paradigma para a R&D?
Percebemos assim a razão porque, apesar de todos os apelos humanitários da parte das ONGs, a Big Pharma se recusa a abandonar o seu posicionamento inflexível contra a libertação das licenças sobre medicamentos contra o VIH/SIDA. Esta indústria que vive dos rendimentos (será uma contradictio in terminis?) está preocupada que qualquer concessão nesta área possa fragilizar toda a sua estrutura, monopolística, de preços, baseada no acordo TRIPs (acerca dos Trade-related Intellectual Property Rights ou direitos comerciais de propriedade intelectual) e conduzir, finalmente, ao colapso e ao fim dos super-lucros empresariais.

Eu não vejo nenhum problema em dar à Big Pharma 20 ou 30 anos de exclusivo dos direitos de patente do Viagra®. Mas medicamentos essenciais que preservam milhões e milhões de vidas são outro assunto. Tendo as regras do TRIPs sido escritas, essencialmente, pela indústria farmacêutica, este acordo traduz-se numa defesa rígida e genérica da propriedade das patentes das empresas. As suas regras não podem fazer, nem farão, uma distinção tão vital como a apontada. Eis porquê a R&D empresarial, protegida pelo acordo TRIPs da Organização Mundial do Comércio, é simplesmente uma estrutura obsoleta quando se trata de investigação e desenvolvimento de medicamentos essenciais e salva-vidas.

Precisamos de um enquadramento novo para a R&D, baseado numa abordagem dos direitos de propriedade intelectual e patentes orientada para as necessidades das pessoas, coordenado, se calhar, pelas Nações Unidas, em que há lugar para muitos outros participantes, incluindo governos, instituições governamentais e organizações da sociedade civil.

Este novo Manhattan Project poderia ser financiado por um Fundo Global, essencialmente, através de um imposto sobre as vendas mundiais de medicamentos. Por exemplo, um imposto de 1% sobre as actuais vendas globais de 450 mil milhões de dólares criaria um fundo de 4,5 mil milhões.

Os salários dos executivos
Mas antes de terminar, deixem-me voltar ao assunto dos salários dos executivos. Cada vez mais recursos, que poderiam ir para a R&D privada, estão a ser utilizados para as remunerações dos quadros superiores da indústria farmacêutica.

Eis os pacotes salariais dos administradores-gerais das cinco maiores empresas farmacêuticas:
- Pfizer: Hank McKinnell, pacote salarial anual total: 28 milhões de dólares mais 30,6 milhões USD em direitos de acções;
- Merck: Raymond Gilmartin: 19,5 milhões USD mais 48 milhões USD em direitos de acções;
- Bristol-Meyers Squibb: P.R. Dolan: 8,5 milhões USD mais 3,4 milhões USD em direitos de acções;
- Glaxo SmithKline: Jean-Pierre Garnier: 11,8 milhões USD; e
- Du Pont EI: C.O. Holliday: 13,5 milhões USD.

Adicionemos agora os salários, mais baixos mas ainda super, de uns milhares de executivos superiores da indústria, e compreender-se-á porque é que os custos de investigação e desenvolvimento de medicamentos têm crescido tanto.

São estas as pessoas que têm estado a chorar pelos “direitos de propriedade intelectual” e a negar aos milhões e milhões de pessoas seropositivas as radicais reduções de preço que lhes conservariam as vidas.

O VIH/SIDA pode ser domado, mas somente empreendendo o equivalente actual de um Manhattan Project, armado com um novo paradigma para a R&D, que não seja refém do desperdício e dos lucros das empresas.


* Walden Bello é professor de Sociologia e Administração Pública na Universidade das Filipinas e director executivo do Instituto “Focus on Global South”, sedeado em Banguecoque.

** Licenciamento obrigatório – mecanismo legal, previsto pela OMC e nos acordos TRIP, pelo qual um país, numa situação grave de saúde pública e salvaguardadas algumas condições, pode retirar a protecção legal de uma patente e definir as condições em que o produto que aquela protegia pode ser fabricado por terceiros.

*** Importações paralelas – designação dada ao sistema, proibido pela OMC e acordos TRIP, através do qual bens são importados ilegalmente. Bens protegidos por patentes mas que foram produzidos sem respeitar os direitos que essas patentes devem proteger.




Durante a Conferência de Banguecoque, activistas entregaram a “taça da empresa farmacêutica mais ganançiosa” à Abbott Laboratories por causa do aumento de preço do Norvir em 400%.




Comments:
comecei agora o tratamento e tomo metadona ando a passar as passas do algarve.alguem ke passepela mesma expriencia a gradecia alguma dica
 
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