quinta-feira, julho 06, 2006
Um valente espanto
Público 05.07.06
Ana Cristina Pereira
Há cinco dias que o meu cérebro anda às voltas. Como pode o Ministério Público (MP) sustentar que os menores atiraram Gisberta para um poço de 15 metros de profundidade sem a matar? E como é que isto se conjuga com o crime de ocultação de cadáver?
As agressões ter-se-ão arrastado ao longo de dois dias - dois dias. Os menores tê-la-ão espancado, tê-la-ão sujeitado a sevícias sexuais, tê-la-ão queimado com pontas de cigarro. Tudo por "brincadeira", por "divertimento". Imagino o quanto Gisberta se terá divertido...
Os rapazes terão ateado uma fogueira para se desenvencilharem do corpo e só terão recuado por temerem a denúncia feita pelo fumo e pelo cheiro. Não a mataram, não senhor. Ter-se-ão "limitado" a atirar a agonizante Gisberta ao poço, apesar da sua súplica.
É convicção do MP que quem matou Gisberta foi a água. Os rapazes "apenas" admitiram a hipótese de ela vir a morrer e se conformaram. Não compreendo, não consigo compreender. Se eu espetar uma faca no coração de um transeunte e ele morrer, não fui eu que o matei, foi a faca? E se lhe der um tiro na cabeça? Foi a pistola?
Disparate meu que não sou jurista. A opção pelo homicídio tentado ao invés do consumado é elementar! Gisberta seria uma espécie de MacGyver (herói de televisão da década de 80 que resolvia o mais bicudo dos problemas com um simples fio de cabelo). Qual doença, quais ferimentos, qual quê? Gisberta tinha força e artimanha para sair do poço. Quem, no lugar dela, não teria? Não escalou mais de 15 metros e caminhou até uma cabina para chamar uma ambulância porque não quis...
Quem me dera ser jurista, quem me dera. É que gostaria ainda de perceber outro aspecto que muito me tem intrigado. Como é que se pode, ao atirar uma pessoa viva para um poço, não querer provocar uma morte e ao mesmo tempo desejar ocultar um cadáver? Há cadáveres vivos?
Não compreendo, não compreendo. Cristina, a primeira jovem a desaparecer em Santa Comba Dão, também morreu por afogamento depois de, alegadamente, o cabo reformado a ter tentado estrangular e a ter atirado à água. Porque terá, afinal, o antigo militar sido indiciado pelo crime de homicídio qualificado e não pelo de homicídio tentado, como os 13 rapazes? Será que Cristina era menos dotada do que Gisberta? Ou será que Gisberta - por ser imigrante, sem-abrigo, transexual, prostituta, seropositiva e tuberculosa - era menos pessoa do que Cristina?
Senhor procurador, se um dia (o diabo seja cego, surdo e mudo) um bando de rapazes me apanhar numa esquina, me levar para um prédio devoluto, me espancar, violar e atirar a um poço de mais de 15 metros de profundidade, não pense que sou o MacGyver. Eu nem sequer sei nadar...
Peça medidas tutelares exemplares para os meus carrascos, senhor procurador! Uma morte é uma morte. E há menores em regime fechado por tráfico de droga. Traficar droga será mais grave do que espancar, violar e atirar a um poço alguém que pede auxílio?
Ana Cristina Pereira
Há cinco dias que o meu cérebro anda às voltas. Como pode o Ministério Público (MP) sustentar que os menores atiraram Gisberta para um poço de 15 metros de profundidade sem a matar? E como é que isto se conjuga com o crime de ocultação de cadáver?
As agressões ter-se-ão arrastado ao longo de dois dias - dois dias. Os menores tê-la-ão espancado, tê-la-ão sujeitado a sevícias sexuais, tê-la-ão queimado com pontas de cigarro. Tudo por "brincadeira", por "divertimento". Imagino o quanto Gisberta se terá divertido...
Os rapazes terão ateado uma fogueira para se desenvencilharem do corpo e só terão recuado por temerem a denúncia feita pelo fumo e pelo cheiro. Não a mataram, não senhor. Ter-se-ão "limitado" a atirar a agonizante Gisberta ao poço, apesar da sua súplica.
É convicção do MP que quem matou Gisberta foi a água. Os rapazes "apenas" admitiram a hipótese de ela vir a morrer e se conformaram. Não compreendo, não consigo compreender. Se eu espetar uma faca no coração de um transeunte e ele morrer, não fui eu que o matei, foi a faca? E se lhe der um tiro na cabeça? Foi a pistola?
Disparate meu que não sou jurista. A opção pelo homicídio tentado ao invés do consumado é elementar! Gisberta seria uma espécie de MacGyver (herói de televisão da década de 80 que resolvia o mais bicudo dos problemas com um simples fio de cabelo). Qual doença, quais ferimentos, qual quê? Gisberta tinha força e artimanha para sair do poço. Quem, no lugar dela, não teria? Não escalou mais de 15 metros e caminhou até uma cabina para chamar uma ambulância porque não quis...
Quem me dera ser jurista, quem me dera. É que gostaria ainda de perceber outro aspecto que muito me tem intrigado. Como é que se pode, ao atirar uma pessoa viva para um poço, não querer provocar uma morte e ao mesmo tempo desejar ocultar um cadáver? Há cadáveres vivos?
Não compreendo, não compreendo. Cristina, a primeira jovem a desaparecer em Santa Comba Dão, também morreu por afogamento depois de, alegadamente, o cabo reformado a ter tentado estrangular e a ter atirado à água. Porque terá, afinal, o antigo militar sido indiciado pelo crime de homicídio qualificado e não pelo de homicídio tentado, como os 13 rapazes? Será que Cristina era menos dotada do que Gisberta? Ou será que Gisberta - por ser imigrante, sem-abrigo, transexual, prostituta, seropositiva e tuberculosa - era menos pessoa do que Cristina?
Senhor procurador, se um dia (o diabo seja cego, surdo e mudo) um bando de rapazes me apanhar numa esquina, me levar para um prédio devoluto, me espancar, violar e atirar a um poço de mais de 15 metros de profundidade, não pense que sou o MacGyver. Eu nem sequer sei nadar...
Peça medidas tutelares exemplares para os meus carrascos, senhor procurador! Uma morte é uma morte. E há menores em regime fechado por tráfico de droga. Traficar droga será mais grave do que espancar, violar e atirar a um poço alguém que pede auxílio?