quarta-feira, dezembro 21, 2005

Há mais vida para além do infortúnio

Lusa 20.12.05

A vida tem agora outros horizontes para 180 dependentes de drogas duras que decidiram pedir ajuda ao único Centro de Terapias Combinadas (CTC) de Portugal após contraíram o vírus da sida e tuberculose.

"Sei que a minha esperança de vida continua curta, mas, ainda assim, é bem maior do que a sentida quando descobri a infecção pela sida", testemunha o antigo consumidor de heroína José, 36 anos, um dos utentes do CTC, que funciona no hospital de doenças infecto-contagiosas Joaquim Urbano, na zona Oriental do Porto.

As estatísticas sustentam a convicção de José: neste hospital, a taxa anual de mortalidade dos seropositivos com tuberculose está hoje reduzida a quase um terço da registada em 1998, passando de 55 para 20 cento.

"A tuberculose nos doentes com sida é mais difícil, reactiva-se mais facilmente, mas é curável, como se tem comprovado neste serviço", sublinha o médico João Semedo, presidente do Conselho de Administração do Hospital Joaquim Urbano.

José descobriu "por acaso" que estava infectado pelo vírus da sida em 2000, quando já era dependente da heroína e foi ao Hospital João Urbano procurar cura para a tuberculose que entretanto contraíra. "Sofri o choque da minha vida", recorda, amargurado, este homem que perdeu o pai aos 12 anos, consome drogas desde os 14 e vive agora com 149 euros mensais da Segurança Social, depois de deixar um emprego na construção civil, devido aos seus problemas de saúde.

Cinco anos depois de descobrir que era seropositivo, o ex-heroinómano como que segue, sem saber, o apelo contido num poema Manuel Laranjeira, escrito em momento de agonia:
"Espera aí vida, que ainda te não vivi". Já venceu a dependência da heroína com a ajuda de metadona, ficando-se pelos consumos de haxixe, continua a luta contra a tuberculose com terapêutica antibacilar e nunca facilita na toma dos retrovíricos, necessários para compensar a debilitação das suas defesas orgânicas pelo vírus da sida.

Conhecido entre profissionais de saúde como a "loja do cidadão toxicodependente infectado", o CTC difere dos vulgares CAT (centros de atendimento a toxicodependentes) porque valoriza, em pé de igualdade, as ajudas médica e social aos utentes. Enfermeiros, pneumologistas, infecciologistas, psicólogos, psiquiatras, odontologistas, assistentes sociais e técnicos psico-educativos integram a equipa do CTC.

"Chegamos a tratar de apoios da Segurança Social para os doentes ou até a levá-los ao Registo Civil para tirarem o bilhete de identidade", detalha o presidente do Conselho de Administração do Joaquim Urbano. A organização de actividades lúdicas e o tratamento da dentição, geralmente em muito mau estado, são também asseguradas pelo centro. "Ao tratar-lhes os dentes, estamos sobretudo a estimular a auto-estima de pessoas perfeitamente desestruturadas", observa João Semedo.

O retrato-robô do utente deste serviço aponta para um homem dos 25 aos 40 anos, dependente ou ex-dependente da heroína, com baixo nível de escolaridade, sem retaguarda familiar, desempregado, em alguns casos sem residência fixa e sobrevivendo do pequeno delito ou do apoio da Segurança Social.

Para muitos deles, "o melhor momento do dia" é a altura em que se deslocam ao hospital, onde podem conviver com companheiros de infortúnio e se sentem acarinhados e apoiados, diz João Semedo.

O CTC funciona todos os dias das 08:00 às 20:00 e José, que integra o primeiro de três turnos de atendimento, garante que nunca falha. "Tem de ser. Sei muito bem que tenho a vida amarrada a isto", admite este ex-heroinómano, que viu frustrarem-se várias tentativas de desintoxicação, quando ainda se julgava sem patologias infecciosas.

"Uma delas aconteceu em Barcelona onde, entre 40 toxicodependentes, era o único a falar português. E afinal, nem era preciso percorrer 1.200 quilómetros quando tinha o que precisava aqui à porta", diz o doente, que reside com a mãe numa modesta habitação da freguesia portuense de Campanhã.

José desloca-se todos os dias ao Joaquim Urbano de autocarro, com uma senha que lhe é dada pelo hospital, e o primeiro "tratamento" que faz é ao estômago, uma vez que o hospital garante o pequeno-almoço (ou o lanche nos turnos da tarde) a todos os utentes do CTC. Depois, recebe a senha de autocarro para o dia seguinte e desloca-se ao pavilhão de tratamentos para lhe serem administrados os retrovíricos, a terapêutica antibacilar e uma dose de metadona, que vai diminuindo ao longo do tempo.

"Nisso não facilitamos", assegura João Semedo, reconhecendo que esta é "a única forma" de garantir que a terapêutica é seguida, já que as múltiplas reacções secundárias provocadas pelos retrovíricos tentam os utentes a desistir.

Seguem-se as consultas das diversas especialidades, algumas de grupo, e o apoio social e psico-educativo, num persistente e nem sempre frutuoso trabalho. "São trajectos muito longos, mas sabemos que não pode haver pressas, nem milagres, nesta arte de tratar os doentes toxicodependentes. Uma pequena vitória, que é rara, dá muita satisfação e é um estímulo enorme para as equipas", afirma o gestor do hospital.

A enfermeira Susana Ribeiro, 30 anos, que no seu percurso profissional de seis anos nunca fez outra coisa senão lidar com doenças infecto-contagiosas no Hospital Joaquim Urbano, subscreve a opinião e nega o "desgaste" geralmente imputado a quem trabalha neste serviço.
"As dificuldades é que tornam o desafio mais estimulante", assegura.

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