terça-feira, junho 21, 2005

O direito de ser mãe sem se infectar com o VIH

EATN
EUROPEAN AIDS TREATMENT NEWS
Volume 14, 1 • Primavera 2005 • Edição Portuguesa

Quando os critérios económicos são mais importantes que a ética e o direito à saúde

Mesmo antes do último dia Mundial da SIDA, durante a 7ª edição do Congresso sobre Terapêuticas do VIH, foram divulgados os resultados de uma equipa do Hospital Carlos III, de Madrid, sobre a transmissão do VIH em casais sero-discordantes (casais em que apenas um elemento é VIH-positivo) que manifestavam o desejo de serem pais. As conclusões foram: “as relações sexuais desprotegidas durante o período fértil da mulher podem ser consideradas como uma alternativa à concepção in vitro em casais sero-discordantes que desejem ser pais”. Esta afirmação teve muitas repercussões na imprensa espanhola, tendo-se criado esperança e confusão - envolvendo o sexo desprotegido e as práticas de risco - não apenas nos casais sero-discordantes, mas também na população em geral. Refira-se que as técnicas de reprodução assistida em Espanha são caras e suportadas pelos casais.

Este não é o primeiro estudo deste tipo a ser realizado. De todos, o mais conhecido é talvez o realizado em França em 1997 com 92 casais sero-discordantes em que o homem era seropositivo. Nesse estudo, 4 mulheres seroconverteram: 2 no 1º trimestre da gravidez e duas depois do parto. Foi sugerido que as in ecções se haviam dado porque os casais não tinham seguido as recomendações de usar sempre preservativo depois da mulher ter engravidado. Em geral, este e outros estudos semelhantes mostram (mas não provam) que em casais serodiscordantes que tentam conceber através de sexo não protegido – usando preservativos no resto do tempo -, o risco de transmissão é reduzido (mas não é eliminado).

O que é novo no estudo espanhol é que ele tem lugar numa altura em que está generalizado o uso de HAART e inclui casais em que é a mulher que tem VIH. É difícil, contudo, comparar casais em que nuns casos é o homem e noutros a mulher que está infectada, acima de tudo porque é sabido que a mulher tem mais risco de se infectar através de sexo vaginal do que o homem. Apesar disto, o estudo espanhol conclui não haver “diferenças significativas” quem quer que fosse que estivesse infectado.

Outro aspecto controverso tem a ver com o facto deste estudo obsevacional ter começado quando os investigadores recebiam casais que queriam engravidar mas que não queriam (ou não podiam por razões económicas) utilizar técnicas de reprodução assistida, como a lavagem de esperma. Os investigadores iniciaram então um estudo com 75 casais a quem, em vez de lhes ter sido prestada ajuda para usufruir de técnicas que se sabe serem seguras, foram feitas recomendações: esperar até 6 meses depois de se atingirem, com HAART, cargas virais abaixo das 50 cópias, para ter relações sexuais não protegidas e para as limitar aos dias férteis da mulher. Procedia-se, então, ao follow-up dos casais, colhendo-se informação sobre a gravidez e a transmissão do VIH. O estudo, com o resultado final de 76 bebés VIH-negativos e nenhuma mãe infectada, foi apresentado como bem sucedido.

Além do facto da realização deste estudo observacional não requerer competências científicas, falta ainda confrontar alguns dos seus pontos. Por exemplo, quantas vezes os casais tentaram conceber antes de o conseguirem? Quantas mulheres abortaram? De facto, ao apresentar os resultados com 75 casais=76 bebés pode conduzir-se a falsas expectativas de como é fácil engravidar seguindo estas recomendações.

Depois da divulgação dos resultados podiam ler-se em muitas publicações comentários como este: “um tratamento anti-retroviral eficiente permitirá que casais sero-discordantes tenham crianças saudáveis e não transmitam o vírus ao parceiro”. Muitos media anunciaram que esta “descoberta” representava uma “grande esperança” para os casais nestas condições. E que esta “estratégia” podia agora substituir os métodos de reprodução assistida como a lavagem de esperma ou a fertilização in vitro, que apresentam, supostamente, custos elevados para os sistemas públicos de saúde – nos países em que eles são de facto cobertos por esses sistemas – ou para os próprios casais, em países como a Espanha.

Estes resultados surgem ao mesmo tempo que os divulgados pela Agência Catalã para a Avaliação da Tecnologia e Investigação Médica, sobre um estudo pedido pelo Programa de Prevenção e Assistência das pessoas com VIH/SIDA do Depto. de Saúde da Catalunha. O relatório deste estudo referia que a introdução de técnicas de lavagem de esperma no sistema público de saúde representava um “dilema ético”, dado o seu elevado custo em comparação com o benefício retirado pelos casais serodiscordantes em terem filhos naturais. Podemos pois facilmente antever o impacto dos resultados deste relatório e do estudo do Hospital Carlos III em futuros esforços para tornar gratuito o acesso a estas técnicas. E o que acontecerá no resto da Europa e, em particular, naqueles países em que essas técnicas são oferecidas de modo gratuito aos casais serodiscordantes?

No mundo inteiro, as mulheres são quem é mais atingido pela transmissão do VIH por via sexual. Este novo estudo e as suas conclusões mostram uma vez mais o quanto é por vezes esquecido que as mulheres não têm apenas direitos reprodutivos, mas também direitos sexuais e o direito à vida. Ao contrário de muitos outros países com bastante menos recursos, nós temos nesta parte do mundo o grande privilégio de dispor de técnicas de reprodução assistida que reduzem para quase zero o risco de tanto a mãe como a criança serem infectadas. Quem os porá ao nosso alcance?
Marion Zibelli

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