quarta-feira, março 23, 2005

Trab. sexos e outras novidades na notificação


Franz Kafka, 1883-1924

Subnotificação, novo modelo de notificação e burocracia
Pedro Silvério Marques
Boletim Abraço

Cumprindo uma promessa do encarregado da CNLcSIDA aí está, já oficial e publicado no Diário da Republica, o “novo” impresso “simplificado” para a notificação, agora obrigatória, dos casos de infecção pelo VIH e SIDA.
Relembremos que esta iniciativa do Prof. Meliço Silvestre surgiu quando, após a sua tomada de posse, foi confrontando com a dimensão da subnotificação e dos atrasos das notificações daqueles casos, que atribuiu à “burocracia”.
Burocracia que era atribuída ao próprio impresso para notificação, pelo excesso de informação pedida e/ou dificuldade de preenchimento, e não ao processo de notificação em si mesmo.
Ao fim de mais de dois anos lá se produziu um “novo” impresso “simplificado”!

Novo?
Bom, a mim parece-me mais um célebre lifting de uma socialite da nossa praça.
O visual foi refrescado, aumentou-se em cores o que se diminuiu em número de folhas e gramagem do papel, ganhou um look informático – mas só o look.
Numa aparente cedência ao politicamente correcto, deixou de se inquirir sobre a “Raça” do notificado, a origem ou residência do parceiro “em África” passou a “País estrangeiro” e “Prostituta”, como causa de transmissão passou a ser, pudicamente, “Trab. sexo” (sic).

Talvez, também, na mesma linha a ordenação das várias causas de transmissão foi alterada. Entre outras alterações note-se que “Homossexual” passou de primeira a terceira, “Heterossexual”, de décima primeira a segunda, a “Infecção nosocomial”, de décima quinta (e última) a oitava. A nona pergunta passou, no novo impresso, a sexta deslocando as antigas sexta, sétima e oitava para, respectivamente, sétima, oitava e nona.

Simplificado?
Reduziu-se alguma da informação pedida.
Deixou de se querer saber a “Profissão” do notificado e desapareceram, pensa-se que sem grande mossa, como causas de transmissão “homossexual/bissexual masculino e toxicodependente” e “politransfundido”.

Radicalmente, foram eliminadas três perguntas, que de facto mais pareciam ser uma tentativa de confirmação do diagnóstico do que fornecer informação epidemiológica relevante, a saber:
10 – Sintomas constitucionais (no caso de CRS-LPG).
12 – Se diagnóstico presuntivo de SIDA indique as doenças e suas características.
14 – Outros exames (só necessário para complemento do diagnóstico segundo os critérios CDC).

Curiosamente, no entanto, vem o novo impresso pedir agora:
· Tipo e classificação CDC (se também disponível).
· O ano provável de infecção.
· A existência de gravidez à data do diagnóstico, no caso da transmissão mãe-filho.

E, para além da data de nascimento e da nacionalidade que constam quer do antigo quer do novo modelo, pede-se agora também:
· A idade.
· A naturalidade.

Simplificou-se?
Retiraram-se três perguntas, é um facto, mas, apesar do look informático e de “teste americano”, o número de casas e cruzinhas a preencher e colocar não é menor neste novo impresso. Aumentou-se a informação pedida nas perguntas 1, 2, 3 e 6 (que era a 9), reduziu-se na 8 (7) e 9 (8), manteve-se tudo igual nas 4, 5, 7 (6), 10 (11), 12 (15) e 13 (16). Na nova pergunta 11 (antiga 13) deixa de se querer saber qual o método, serviço e responsável por cada teste de serologia VIH mas pedem-se, em contrapartida, as datas dos testes serológicos e do primeiro teste VIH+.

Parece curto para mais de dois anos de “trabalho” sobre o impresso de notificação.
Vai melhorar a “taxa de notificação”? Vamos esperar para ver, mas tenho muitas e sérias dúvidas. Quem não notificava, ou notificava com atraso, porque o documento era “burocrático” – a começar pelo próprio Prof. Meliço Silvestre – não vai encontrar grandes razões para alterar quer a sua opinião quer os seus procedimentos.

Burocracia?
Burocracia, burocrático e burocratas são termos que passaram a designar, na linguagem pós-moderna da nossa arcaica sociedade, não um processo administrativo e os seus intervenientes, mas a mãe de todos os males, a raiz e causa de todos os problemas, o argumento e o adjectivo com que todos estão de acordo que se deve acabar.

Esta, fácil, unanimidade arrisca-se, no entanto, a esconder muita coisa em particular a incapacidade de definir claramente o objectivo que se pretende alcançar, a informação estritamente necessária para tal e o processo mais simples e económico de o fazer.
Deve ser por isso, também, que todos os inúmeros e múltiplos processos de desburocratização anunciados neste país têm tido, na generalidade, os pobres resultados que todos conhecemos.
Em relação à “simplificação” da notificação parece-me que foram esquecidas algumas perguntas básicas:
É precisa? Para quê?
Que efeitos produz? O que é que não resolve?
Serão necessárias quatro notificações iguais (PA, CRS-LPG, SIDA e óbito) para cada caso de infecção?
Qual a informação que tem sido estritamente necessária (e efectivamente tratada) a nível nacional, europeu e global, para a vigilância epidemiológica do VIH/SIDA?


Talvez também não fosse completamente má ideia ver como se faz “lá fora”, em processo e conteúdo, e copiar os modelos que funcionam melhor que o nosso.
Estou convencido que, com uma definição clara e objectiva dos propósitos e alcance da notificação e alguns exemplos de “sucesso”, teria sido possível identificar a informação realmente necessária e desenhar um processo que permitisse, de forma efectivamente mais simples, melhorar a informação sobre a evolução e o impacto da infecção pelo VIH em Portugal e estar ciente das limitações intrínsecas que a informação disponibilizada tem, sempre.
Mas foi o que não se fez!

Comments:
Embora haja pessoas infectadas que não tomam ainda retrovirais,poderia haver uma forma fácil de saber o numero exacto de pessoas infectadas. Bastava exigir aos hospitais uma listagem dos utentes que vão buscar medicamentos. Acho que pelo menos saberiamos o numero aproximado de pessoas infectadas, eventualmente mais correcto do que os numeros apresentados com todos os formulários de notificação.
 
O número de pessoas infectadas não corresponde nem ao das pessoas que são
seguidas nos hospitais nem, muito menos, ao das que têm critérios clínicos
para tratamento e que serão tratadas.
E isto apesar de ser importante saber, ou ter uma ideia mais aproximada
possível de todos estes números. Mas a forma de conhecer estas diferentes
realidades tem de ser diferente.
O consumo dos medicamentos dará o número dos que estão em tratamento. A
notificação só serve (ou servirá) para o conhecimento +- aproximado dos que
testaram positivos. Só o acompanhamento da situação por estudos de
prevalência e nomeadamente o estabelecimento de indicadores sentinela
permitirá ter uma ideia do número total de infectados na população global.

Do pouco que se sabe, ou soube alguma vez, o número de pessoas em tratamento
em Portugal deverá situar-se entre os 12 e os 15 mil. Os notificados, que
serão os que fizeram um teste positivo (descontando a subnotificação, claro)
serão quase 27 mil. Os infectados, who knows? 50, 60 mil?
 
Enviar um comentário

<< Home

This page is powered by Blogger. Isn't yours?

Enter your email address below to subscribe to Blog do GAT!


powered by Bloglet